QUASE NO TIBET

Era sexta.

Pouca roupa estava arrumada na valise.

Para a última hora deixou os cremes de beleza e o acabamento da maquiagem. Sair sem delineador e máscara para os cílios era um atentado ao pudor. Por três dias iria para um retiro espiritual. Lavaria a alma. Desejava ficar pronta, afinal já passara dos sessenta, embora há muito tempo, usava mais sua idade biológica, que diferia da cronológica cerca de dez anos.

Uma dedicação extremosa ao seu corpo a fazia exercitar-se diariamente e um botox, vez por outra, não fazia mal nenhum. Somente no carnaval, abriu exceção, e liberou o comportamento estóico.

O ônibus leito oferecia mais conforto que o esperado.

Os homens ocupavam os lugares da direita enquanto as mulheres, os da esquerda. Assim que o motorista deu a partida no veículo, o monitor puxou: Ave, Ave, Ave-Maria. Rezaram o rosário, escutaram uma leitura de vários trechos da Imitação de Cristo e depois, guardaram silêncio.

Subiram a serra tortuosa e no alto da montanha viu-se o mosteiro. Lindo panorama: o arrebol avermelhado, o verde escurecido...

Sentiam-se quase que no Tibet.

Deixou para trás carnavais da vida toda.

Costumava cair na avenida, vestida de verde e rosa, Mangueira sempre. O acontecido no carnaval passado contribuiu muito para a decisão tomada neste ano. Passista que sempre fora, por causa da idade, a colocaram na ala das baianas. Achava a fantasia pesada, sentia calor, passava mal. E perdeu um pouco o ânimo. O baile do Copacabana aliviava a mágoa. Fantasiava-se de vedete dos anos cinquenta, toda de negro, reluzindo em cristais e paetês espelhados.

Mascarada, ostentava uma cabeça sensacional. Tudo obra de um renomado estilista, cuja criação atraiu todos os olhares femininos e delírios não tão masculinizados do sexo oposto. Um apache musculoso e sarado de sol e de praia a enlaçou, e mergulharam no samba. Sem tirar a máscara, não resistiu, quando o índio lhe ofertou um lenço úmido. Cheiraram. Voaram, sabe-se lá para que paragens. Encostaram-se em uma coluna próxima à orquestra e desabaram.

Neste carnaval seria toda abstêmia e religiosa. Olhou para o colega do banco ao lado. Bonitão.

Mais que depressa, baixou os olhos para o crucifixo do terço.

Seriam três dias de retiro espiritual. Arrumou seus pertences na cela que lhe coube. Perguntou-se onde ficaria o Bonitão.

Decidiu deixar para lá.

Salve Rainha, mãe de misericórdia...

No jantar, as mulheres sentaram-se diante das longas mesas retangulares, de frente para os homens, nos bancos que substituíam cadeiras. Cadeiras ou poltronas seriam bem mais confortáveis, mas faziam seu papel no estoicismo do ambiente.

Austeridade.

O bonitão à sua frente.

Coincidência?

Baixou os olhos.

Ave-Maria, cheia de graça....

Que dentes lindos tinha aquele homem! Que olhar penetrante! Aquele pensamento lhe valia mais de cem Mea Culpa.

Serviram uma sopa rala de legumes só para aquecer.

Em seguida vieram os bolinhos de catalônia acompanhados de arroz integral e, para encerrar, três gomos de laranja.

Abstinência em exercício.

Quinze minutos para as devidas apresentações. Preleção antes de dormir. Alvorada às cinco horas. A preleção falava das vantagens das pessoas estarem ali recolhidas, longe da concupiscência, da exposição indecente de corpos e genitálias, das músicas cheias de subterfúgios demoníacos, da nudez pecaminosa.

Abaixo a luxúria!!!

Gostaria de saber qual a vantagem de nos lembrar do carnaval, pensava. Deitou-se se imaginando na avenida, os carros alegóricos, as fantasias e quando esbarrava na ala das baianas, voltava a recitar a ladainha. Três dias santificados.

Na última noite o bonitão sorriu. A mente livre de malícia. Ela achou que já havia visto este sorriso.

Onde?

Quando?

Na cidade maravilhosa, ainda havia um resto de carnaval. Do lado de cá ninguém se lembrava do que seria a Quaresma.

O bonitão a puxou de lado. Abriu o blazer e mostrou-lhe o lança-perfume. O acompanharia?

Ainda daria tempo.

Analiamaria
Enviado por Analiamaria em 31/03/2020
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