CADA UM NO SEU HOSPÍCIO (Baú do isolamento 3)
Em guerra aberta conta o COVID-19, a cidade se equilibra à beira do abismo e de vez em quando fica abismada quando a elite bota a cara feia de fora e desfila pelas ruas nos seus carrões, pedindo que os trabalhadores voltem no momento em que estamos vivendo e quase morrendo uma pandemia. Foi ontem aqui em João Pessoa e em outras cidades no Brasil. É assim que as coisas são no mundo da burguesia predadora. Zero de empatia com os de baixo.
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Um dia uma moça de Mari me encontrou na rodoviária e perguntou:
-- Oi, tudo bem, Mozart?
-- Ta não.
Ela me olhou com cara de melindrada e nunca mais falou comigo. Não sei o que pensou na hora, já que esperava uma resposta padrão tipo: “tudo bem, e você?” Só que não estava tudo bem e naquele dia justamente eu não me sentia disposto a mentir, só isso. Ontem eu fingi, não nego. Um amigo ligou. “Tudo bem?” E eu: “Melhorando. Estou adquirindo novos hábitos, fazendo exercícios, escrevendo mais, valorizando os afazeres habituais, sublinhando os afetos”. Fantasiei só um pouco.
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Fiz um minucioso trabalho de pesquisa online sobre crônicas da pandemia. Nesse mundo das redes sociais, você não viveu se não tiver uma plateia. Cada um fala do seu cotidiano e tem prazer de mostrar aos outros como é o mundo de seu ponto de vista. Inclusive eu. Diariamente a imprensa divulga os indicadores da epidemia. Tendência da evolução, casos confirmados e tudo o mais. Entretanto, é nas narrativas dos blogueiros onde se analisa o avanço da desagregação social e psíquica das pessoas em seus esconderijos.
Conforme meus estudos, a economia está muito desaquecida e o amedrontamento cresce de forma consistente, a um ritmo de 30% de fobia diária. Aqui estamos consumindo duas barras de sabão cotidianamente. Cancelei a assinatura do jornal, temendo que o vírus cole no papel e aborde minha nau vulnerável.
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Meu grupo de amigos da Rádio Zumbi parece preocupado com o círculo maior da solidão e tenta reestabelecer os sinais para prosseguir as produções de rádio web, mesmo precariamente, via internet. Quase todo dia geramos pod cast onde a gente ri e tira onda uns com os outros. Zombarias nervosas como se a risibilidade avançasse contra a força da gravidade de um planeta estranho, ou contra o impulso de uma torrente descomunal. Tudo para recuperar o ânimo.
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E eu vendo de perto a fragilidade do corpo e da mente humana. Convivendo com uma criatura alucinada com a presença de um micro-organismo num aperto de mão, uma tosse. Pânico inconcebível para quem está do lado de fora. Projete o desespero de um homem que se debate para se ver livre de fortes garras que apertam sua garganta, mesmo não havendo dedo algum em torno do seu pescoço.
Cada um ao seu modo vive e morre nos seus manicômios particulares e impenetráveis. Essas estatísticas não saem nos boletins da pandemia.