Nunca me disseste que ia doer tanto
Nunca me disseste que ia doer tanto ver a tacanhez humana no seu esplendor, ver o egoísmo humano nos píncaros da ordem do dia, o mundo convulsiona-se numa tosse, num estado febril de histeria colectiva. Eu, eu, eu… tantas vezes eu…
Nunca me disseste que ia doer tanto tomar a consciência de que a mudança ira ser dolorosa, que ira criar muitos conflitos, que a tolerância é zero. Doí-me a descriminação, “fechem as fronteiras” mas deixem sair e entrar mercadorias, “fechem as fronteiras” mas coloquem os nacionais que chegam em quarentena forçada como criminosos, “fechem as lojas e escolas, fechem os restaurantes e hotéis”, mas deixem-me comprar papel higiénico, mascaras, quem sabe até preservativos… “Paguem-me o salario”, “não me roubem as ferias”, “sacrifícios? Isso é para os outros, eu bato palmas à janela”…
Nunca me disseste que ia doer tanto saber que milhões não irão ter emprego, que o meu salário será diminuído, que irei ter que mudar a forma como vivia, que amanhã irá existir fome, gente sem casa, sem pais, sem vida…
Nunca me disseste que ia doer tanto que por ontem não existir uma responsabilidade individual, que por ontem não se cumprirem regras, lares de idosos foram infectados, milhares perderam os que os criaram, que por não se cumprirem regras dezenas de negócios fecharam…
Nunca me disseste que ia doer tanto ver que poucos se importam com o depois, o que fazer depois, apenas pedem para que as contas sejam suspensas, que os apoios caiam do céu, que o “estado” ou seja “nós” todos paguemos… mas parte de “nós” apenas pede, e todos irão pagar…
Nunca me disseste que ia doer tanto ver a tacanhez humana no seu esplendor, e não entenderem que depois de amanhã, continuará a ser Primavera, que a terra está mais limpa, que a vida como a conhecemos, terá que se tornar simples, mais lenta, mais humana…
Nunca me disseste que ia doer tanto ver a tacanhez humana no seu esplendor, por não entenderem que depois de amanhã muitos não irão abraçar, estender a mão, caminhar de olhar no chão, porque no auge da guerra eles estiveram lá… lá fora a trabalhar… e não falo de médicos, de enfermeiros, de policias, caixas de hipermercado, motoristas, funcionários das empresas de electricidade, água, comunicações, transportes, dos cuidadores dos nossos idosos… mas dos outros, dos invisíveis, dos que tratam dos nossos despojos, da nossa alimentação, dos que produzem, dos que realmente fazem falta… dos que hoje se coíbem até de dizer bom dia a quem trabalhava lado a lado, dos que passaram a desconfiar da própria sombra, para que tudo se mantenha a funcionar… Nunca me disseste que ia doer tanto ver a tacanhez humana no seu esplendor, ver tanto esforço não reconhecido, levantar pela manhã e enfrentar a luta de frente sem poder dizer não, e no fim, no fim iremos PAGAR todos, a irresponsabilidade individual de muitos que não protegeram os outros de si mesmos…
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