AMEAÇA INVISÍVEL

O bombardeio jornalístico foi ganhando proporções gigantescas ao longo das semanas. Só se falava na peste. Os intelectuais davam nomes científicos: CORONA VÍRUS, COVID-19 e, apontavam cuidados, restrições, etc. O catador de papelão apenas ouviu alguma coisa, de relance na TV do aeroporto.

Naquele momento, Zelão estava mais preocupado em recolher o lixo, reciclável e não-reciclável que as pessoas insensatas vão deixando pelo caminho. Até mesmo aquela Madame Fon-Fon, que acabara de desembarcar, jogando lenço de papel no chão. Por certo estava gripada, mas lugar do lixo é no lixo, não é?

O dia foi cansativo. Ao chegar ao seu barraco na zona Sul, Dona Amélia já o esperava para o sermão da noite:

- Você precisa se cuidar Zelão! Trouxe o dinheiro das contas? A comida dos meninos ta acabando! Você viu que temos que ficar dentro de casa, de quarentena... a gripe tá matando meio mundo de gente! Não tem água pra tomar banho hoje!

O homem olha para baixo, depois para o teto do barracão, fixa na porta da sala. Vai pra puta que o pariu! Melhor ir tomar umas no bar do Vicentão. Tenho crédito lá ainda! – Pensava ele. E assim o fez. Lá, enquanto jogava uma partida de Canastra com alguns amigos, a TV volta a noticiar casos suspeitos de contaminação naquele Estado.

Uma mulher que acabara de desembarcar no aeroporto, naquela manhã estava infectada com sintomas da doença! Era ela! Puta merda!!

Foi então que caiu a ficha! Não só a ficha. O cigarro despencou dos beiços, com cinza e tudo, queimando o pano verde da mesa, um quinto ás de espadas saltou de uma das mangas do paletó, os olhos vermelhos de cachaça quiseram saltar fora das órbitas e as orelhas colaram-se na notícia que chegava. Foi com tremendo espanto que ele conseguiu balbuciar:

- Gente, eu tô infectado!! Eu tô com Corona vírus!!!!

Os amigos olharam uns para os outros e desataram a rir. AH! AH! AH! Por fim, chamaram o Vicentão...

- O que você colocou na cachaça do Zelão dessa vez? Juravam que o homem estava bêbado, com uma única dose.

- Não! Não! Foi aquela mulher na televisão! Eu peguei no lenço que ela deixou cair no chão! Eu tô fudido!

Assim que terminou a última frase Zelão desmaiou no boteco. Ninguém quis tocar mais a mão nele. Chamaram a ambulância. Levaram-no ao hospital mais próximo onde foi submetido a testes e quarentena severa.

Felizmente, não se constataram sintomas na família. Dona Amélia atribui isso a um milagre de Deus, pois, naquele dia ele não havia encostado as mãos nela. Ele que era cheio de saliências...

Zelão saiu da quarentena duas semanas depois. Pra sua sorte - disseram os médicos - ele teve apenas sintomas leves da doença. Era preciso ter cuidados redobrados: lavar as mãos, usar luvas, álcool gel, máscaras... tudo o que não possuíam.

Entretanto, ele atribui a cura à outro milagre: a cachaça misturada do Vicentão. São raízes e ervas medicinais advindas da Amazônia que curam qualquer tipo de enfermidade, o Tio-avô do Vicentim mesmo lhe dissera. Esses médicos de hoje não sabem de nada não!

- Foi muita sorte eu ter tomado aquela dose dupla de mangüaça assim que cheguei, naquele dia!

Quando lhe perguntam o que continha a água milagrosa, ele o Vicentão, dizem que é segredo de Estado. Esse segredo, de fato, aumentou e muito o faturamento daquele pequeno comércio.

Será mesmo que nós, brasileiros, temos o antídoto tão perto e ainda não sabemos?

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ZNASCIMENTO

znascimento
Enviado por znascimento em 28/03/2020
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