Quarentena

"Vivendo e aprendendo", dizem os mais velhos. Não discordo completamente dessa afirmação, mas me parece que, de certo modo, viver é desaprender. Estes dias ouvi no rádio uma entrevista de um especialista em medicina. Esse especialista explicava enfaticamente que "quarentena" não tinha haver com o número 40, mas, em medicina, trata-se de um período de "isolamento" em que um paciente fica recluso para cuidar de doença. Tive decepção enorme, que para mim quarentena sempre esteve relacionada a 40; jamais à ideia de reclusão. Lamentei minha lógica, a qual não vê lógica em quarentena não dizer respeito a 40. Em sua defesa, minha lógica matemática argumenta que se dezena é igual a 10; dúzia, 12; centena, 100: por que quarentena não seria 40?

Desliguei o rádio, e voltei-me à pia de pratos. Lavei-os, contei-os, separei-os por cor e tamanho; ao fim da tarefa descobri que tenho em casa mais pratos que pessoas. Em seguida, peguei a vassoura, varri a casa três vezes, frente e verso, até avistar a calçada de casa, onde dois cachorros me cumprimentaram com latidos e olhar de solidariedade espontânea. Tenho há muito a impressão de que esses cachorros calçadeiros me entendem e, até, em dados aspectos, compactuam com as quarentenas de minhas incompreensões. Sentem, ainda pela manhã, sob um céu às vezes azul, um tédio injustificado. Há ocasiões em que ocorre o oposto: sob um céu cinza, vêm-lhe alegria inesperada, um sentimento de mundo inexplicável.

Com um namastê, despedi-me dos cachorros calçadeiros e voltei à introdução de meu lar. Passei por "Dom Quixote", parei, abri-o e descobri que a edição que tenho dispõe de mais de oitocentas páginas, divididas em dois tomos. Pesei e pensei, "Quem sabe se agora não é hora...". A hora de pôr a leitura em dia, de aproximar a teoria da prática ou a prática da teoria, o que viesse primeiro. "Nem um caso nem outro, primeiro as prioridades", conclui.

Fui fazer a barba e descobri que barba não deve ficar de quarentena: mãe já havia me alertado. Nem barba nem lagartixas, pois quão tristes são lagartixas em quarentena. Sem falar que quarentena de lagartixa é altamente transmissível. Vi dia desses uma lagartixa em quarentena, ''presa'' em sua morada, e me senti contaminado por seu estado. Balançava a cabeça apenas nos casos estritamente indispensáveis; engordou pesadamente, todos os pares estavam de acordo; o humor ficou sem graça; entristeceu-se e tornou-se insuportável ao convívio coletivo. O jeito que as demais lagartixas arranjaram para lidar com o caso da lagartixa em quarentena foi interná-la. Já cumpriu uma quarentena de mais de cinquenta dias e, até o momento, sem previsão de alta. Pelo visto, o caso é grave.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 28/03/2020
Reeditado em 28/03/2020
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