Flagrantes de um dia de quarentena

Mascarei-me. Saí de casa. Aqui na minha terra – uma cidade de mais de meio milhão de habitantes – ainda se encontram ilhas em que se vacina com tranquilidade. Mesmo assim, tomei o cuidado de ligar antes e uma atendente solícita disse que o posto estava vazio. Sequer me perguntou pelos anos percorridos!

Posicionei-me na fila. Umas três pessoas apenas! Fiquei sobre um xis marcado no chão e aguardei minha vez. Rapidamente, tudo estava pronto. Cumpri meu dever comigo e para com o próximo. As autoridades têm explicado muito didaticamente – a vacina é importante também para o raciocínio médico sobre esse vírus que perturba a humanidade.

Nunca presenciei uma vacinação tão lacônica, tão triste. O dia da vacina – apesar daquelas reclamações habituais – era, também, um dia de descontração, em que amigos se divertiam e se ironizavam nas filas, com uns próximos dos outros. Vacinar para não gripar! Que tempos felizes!

De repente, uma vacina outrora salvadora pode nos ajudar só um pouco – diga-se de passagem, valiosa ajuda! Evitei até falar com a menina, agradeci-lhe com o polegar e fui-me embora... Nem uma conversa, nem um pequeno chiste (os mais idosos são bons nessa prática e quando erram o tom, costumam ser perdoados), nem um “muito obrigado” e o caloroso desejo de “um bom trabalho”.

Obrigado, moça, você que me anotou o nome; obrigado, moça, você que me espetou o braço; obrigado, moça do telefone... E fico, aqui, pensando nesses profissionais mundo afora entregues à faina contra um inimigo tão ínfimo e tão poderoso, e lhes rendo, com a humildade de quem às vezes é surpreendido pela vontade de escrever, a homenagem deste simples brasileiro.

Chego em casa, faço a assepsia recomendada, separo até o par de sapatos e me dizem que o Papa fala a Roma e ao mundo. Sozinho, sozinho... Não assisti ao vivo, mas li comentários e trechos de sua fala triste na solidão do Vaticano. Me lembrei da turista que se entusiasmou, excedeu-se e puxou com força a mão do Papa. Ele a refugou e pediu desculpas depois. Talvez devesse tê-la recebido e lhe perdoado pessoalmente. Como ele agora quereria mesmo um agrado (até extremado!) de uma multidão que lhe transferisse o seu amor por Cristo. Mas tudo foi feito a distância, para corações pesarosos, preocupados, contritos. E aquela turista, tão longe, vendo que o Papa caminha com dificuldade, claudicante, certamente orou com ele e por ele, e entendeu por que Francisco assustou-se e respondeu rispidamente à imprudência de uma admiradora!

O dia vai passando... As informações são muitas, são preocupantes, são coletivamente sombrias. À noite, Karyn Bravo, comandando o Jornal da Cultura, esmiúça o dia (desses dias que não queríamos), e os comentaristas (um médico e um empresário) defendem o isolamento social que vivenciamos como forma de conter o avanço desenfreado da pandemia e não colapsar o sistema de saúde. Convenço-me de que não há outra saída.

Tempos difíceis virão, para todos. Para os menos protegidos pelo capitalismo, certamente dias mais difíceis ainda. É hora de união, de harmonia e de o Estado estender seu braço forte àqueles que, nos seus labores – sobretudo os mais simples – são os construtores infatigáveis de nossas riquezas.

Chega a noite. Não sou lá muito dessas tecnologias. Mas aderi a um tal de ‘whats app’. Li algumas notícias na internet. Me deparei com uma sobre a vitamina d, que seria aconselhada por pesquisadores italianos para o reforço do sistema imunológico e consequentemente nos fortalece contra o inimigo do momento. Eles aconselham inclusive as pessoas a se exporem ao sol. Li, reli e fiz talvez o meu primeiro compartilhamento coletivo Ato contínuo, recebi informação de que se trata de ‘fake news’. Será? Não polemizei.

Vida que segue. Flagrantes melhores virão. Deus é grande e não faltará à inteligência dos homens.