CHUVA

Choveu à noite, só ouvi o barulho. Vi a chuva com o olhar da imaginação e percebi que chovia forte lá na cabeceira do rio. Muita água caindo, mais caudalosa ficava a correnteza de água barrenta que transportava folhas e galhos secos que, aparentemente, não farão falta a ninguém. Meu olhar sutil percebe formigas, no rio-abaixo, e elas me confundem, não sei se estão entregues ao caudal como estratégia de sobrevivência ou se morrem afogadas no volume e na força descomunais da água.

A água que cai, límpida e fria, lava a terra que estava solta e não unida à crosta, que é seu apoio e âncora. Areia e terrinha de grãos miúdos, passageiros da água e do vento, sem lugar fixo ou referência em suas vidas viageiras. E mais folhas, mais formigas, besouros e grilos que estavam fora de casa, gravetos...

As formigas me preocupam, parecem frágeis diante de uma natureza indômita que ruge e se ajeita, ameaçando-as. Será que aquela lava-pé vai se salvar? E a tanajura, com seu traseirinho desproporcional? Olhe, aquela espertinha está em cima de um pedaço de folha, muito verde, que não afunda e segue o fluxo furioso da enxurrada. A folha bate em um galho e vira, deixando o pequeno inseto submerso, bate em outro e desvira. O bichinho estava milagrosamente agarrado à beirada da folha.

As outras formigas seguiam sem transporte particular, iam no fluxo. Aos poucos foram achando troncos ou galhos fixos e terra firme da beira do rio. Pensei que algum tipo de sensor invisível fazia com que se procurassem mutuamente e se encontrassem, pareceu até que pretendiam começar a construir novo formigueiro em lugar seguro. Perderam alguns pertences na correnteza, comidinhas que iriam armazenar, e não teriam como recuperar o que rodou. Algumas ficaram sem uma patinha ou uma antena, outras morreram. Não foram poucas as que saíram do rio bem limpinhas e com a musculatura fortalecida pelo exercício de auto salvamento. A formiga da folha seguia viagem e seu esforço era para não se desgarrar da embarcação improvisada. Não via outra opção para escapar da fúria das águas e nelas não se atirou.

E a formiguinha viajou, viajou e viajou. Conseguiu ficar na sua folha e entrou noutro rio, maior e mais calmo. E chegou ao mar. E o mar, à medida em que ela se afastava da praia, ia ficando cada vez mais calmo, era até gostoso o balanço ritmado de suas águas. E ela viu que não tinha troncos, galhos ou terra firme onde pudesse se agarrar.

Silva Edimar
Enviado por Silva Edimar em 27/03/2020
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