Diário de um enclausurado
24 de março – Diário de um enclausurado
Depois de alguns dias de quarentena, resolvi romper o silêncio fúnebre do mundo. Amanheci ouvindo aos berros Chico Buarque e sua magnífica Cálice. Estamos calados, meu caro amigo, mas o motivo é intangível.
Como de costume limpeza e mãos limpas. A canção conversava comigo e o a sensação de presença aliviava a angústia. Mais música e mais Chico Buarque. De repente, Roberto Carlos vem prosear também e traz sua Detalhes .A vida é pequena, rei, mas É preciso saber viver nesse momento. Quando dei por mim, Noel Rosa e Edu Lobo dialogavam. Ainda não é hora Pra dizer adeus. E veio Caetano, Gil, Nara, Gal, Bethânia, Milton, João Bosco, Aldir Blanc, Guinga... Meu Deus, já não estou mais sozinho.
Abri uma garrafa de vinho e passei minha manhã dialogando com todos eles. À tarde, dei uma cochilada, mas o papo (canções) continuava entre eles. Acordei para almoçar. Já não olhava e nem respeitava horário de almoço. Eu inventei o meu tempo e disse para mim mesmo que vivia um eterno domingo, porém, sem Faustão.
Ao ouvir a “Valsinha” de Chico e Vinícius, me peguei dançando pela sala, sozinho e com a plateia de mim mesmo. Eu ouvia o som do mundo na orquestra apresentada pelo isolamento. Cantei até ficar rouco e o vinho brindava a minha vida interna. Eu estava em boa companhia. Eu dancei e cantei comigo. Bebi e conversei comigo. Não sou tão feio como pensava.
A pandemia aumenta seus números e começa a fazer suas vítimas. O Presidente (sou obrigado a chama-lo assim) declara seu apedeutismo e mostra-se incapaz quando é chamado à responsabilidade. Estamos abandonados num mar revolto sem um comandante. Que Deus nos ajude.
É tarde! O som ainda rola. Olho pela minha janela e vejo apenas o vulto do mundo. O silêncio externo é perturbador, contudo, aqui dentro, de mim e de minha casa, aos berros, a vida pulsa. Exausto e “alto”, deitei-me e dormi nos braços de Bethânia. Acordei de madrugada no colo De Gal. Amei e fui amado pelas duas. Apaguei...