Se Fernando Sabino fosse vivo
Se Fernando Sabino fosse vivo, hoje, concordaria comigo. “Estou sem assunto”. A diferença é que sou poeta também. Mas o olhar para dentro é um exercício de reconhecimento também de tudo o que se acumulou de fora. Buscar algo no mais irrisório dos momentos e encontros cotidianos e se alimentar do acridoce fruto da convivência, hoje está sob ameaça e faz falta, como faz falta o cheiro de mar e a cor que ele ganha sob o sol.
Fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica, meu olhar só alcança o vazio. Tomo o meu café na sala de casa, preguiçosamente desarrumada, e o único acidente ao redor é um vírus que sequer pode visto. As histórias de infância contadas pelos mais velhos ressoam e as cascas de frutas acumulam-se num prato acinzentado. Não há conversas de botequim, nem passeios de casais, nem aniversário de criança.
Um isolamento tão discutido em jornais de um assunto único, venda os olhos do cronista. As conversas telefônicas tornam-se mais frequentes e a dispensa do poeta começa a ficar vazia enquanto o cronista, já desabastecido, olha para as fotos da parede e paras as lembranças nas redes sociais definhando e respirando por aparelhos literários.
Eu, como agente duplo, deixo a xícara vazia e vou até o portão. O dia está ensolarado. Idosos teimam em andar despretenciosos e sorridentes pela rua. Algumas crianças brincam soltas em seu mundo particular, sujas de poeira e perigo. Um morador de rua pede um prato de comida e a cozinheira da vila vai averiguar a necessidade da ajuda.
Observo então que uma criança, na tentativa de alcançar a bola jogada, leva um tombo, ralando os joelhos já marcados e as pequenas palmas das mãos. A expressão de dor e desconforto dura alguns segundos, contudo, levanta-se com um sorriso amarelo, limpando a roupa e assim, volta a jogar.
Se Fernando Sabino fosse vivo, nos atentaria para essa lição de resiliência e nos mostraria encantadoramente o fato de que as dores duram um curto período de tempo. Nos mostraria assim a importância de se levantar e seguir após as crises. Certamente dividiria conosco álcool em gel e palavras cruzadas, mas especialmente, incluiria em sua crônica mais recente mais um puro sorriso. Um sorriso de criança.