Crônica do Corona: O estranho caso do papel higiênico
Num destes dias e dias compulsórios de ócio pouco criativo decidi fazer a diferença. Escrever uma crônica, mas não uma qualquer. Teria que ser “a Crônica do Corona”, uma síntese imorredoura destes dias que abalam o mundo. Uma crônica digna de figurar no mundo das ideias de Platão, modelo universal para as crônicas e capaz de fazer inveja a João do Rio e Rubem Braga, lá nos campos celestiais. Só precisaria de vontade férrea e... um tema.
Primeiro obstáculo. Escrever sobre o quê? Tanta coisa acontecendo...Deitei na rede da varanda, meu lugar secreto de pensar e entre um embalo e outro aguardei elas pousarem, elas, as ótimas ideias. Numa tarde inteira de prospecção o máximo que consegui foram duas cochiladas. Tentei inspiração noturna, a imaginação dos insones falha jamais. Nada. Fui assaltado, isto sim, pelos diabretes notívagos, aqueles que nos instilam maus pensamentos.
Nada me faria desistir. Logo pela manhã convoquei uma reunião da Sociedade dos Filósofos Mortos. Explico. Regularmente os convoco ao pé dos livros em meu quarto para reuniões sapienciais. Aprendo muito com eles. Apareceram aquele dia Sartre, Marx, Nietsche, Hanna Arendt, Rorty e até o estoico Epíteto que andava sumido. Percebi que todos, com exceção de Epíteto, estavam muito agitados. Sem ao menos ouvir meu pedido de sugestão para a crônica, iniciaram um debate acalorado entre eles, cada qual trazendo para suas sardinhas as brasas dos acontecimentos. Evitei as vias de fato em meu quarto encerrando a reunião. Antes de desaparecer no éter, Epíteto deixou a frase “a vida é uma curta estadia numa terra estranha”.
Um tanto desanimado em meus propósitos decidi abandonar esta desértica e confinada realidade e voltar à Matrix. Em dois toques viajei dos Estados Unidos à China. Apareceu uma bolinha no whats, era minha irmã Tania.
Um tanto desanimado em meus propósitos decidi abandonar esta desértica e confinada realidade e voltar à Matrix. Em dois toques viajei dos Estados Unidos à China. Apareceu uma bolinha no whats, era minha irmã Tania.
Somos loucos.Pegamos nosso papel higiênico e corremos pra casa
O humano é bom e generoso. Mas ameaçada a massa é furiosa e egoísta
O humano é bom e generoso. Mas ameaçada a massa é furiosa e egoísta
Pulei o debate sobre natureza humana, mas a estranha frase “pegamos nosso papel higiênico...” acendeu uma luz. Quis saber mais, ouvira sim algo sobre falta do papel, mas desligado que sou, imaginei outro uso, coronavírico, para ele. Mas não, disse a Tania, é só pra limpar o fiorino mesmo. E de repente, não mais que de repente, aconteceu o estalo de Vieira. Habemus thema!
Imediatamente saí à campo digital para coletar informações. Umas palavrinhas no google e o mundo do papel higiênico estava em minhas mãos. Estarrecido percebi que o fenômeno ia muito além do supermercado do Córrego Grande. Donas de casa do mundo inteiro, saíram naqueles idos de março, com o firme propósito de estocar muito muito papel higiênico.
Pesquisei nos jornais da Matrix: Uma repórter entrevista senhora na saída de um supermercado levando no carrinho 9 pacotes do produto. Após um cálculo rápido ela perguntou “senhora a senhora está levando 8 quilômetros e meio de papel, vai usar tudo”? Quem pergunta o que quer ouve o que não quer. Por motivos de decoro não transcreverei a resposta. Na Austrália mulheres saíram no tapa pela disputa de um pacote – vejam o vídeo – e um homem defendeu com faca seu direito de limpar o bufante.
Na lista do google a manchete do jornal "O Observador", de Portugal chamou atenção “Por que é que a caça ao papel higiênico é tão viral como a COVID-19?”. Tudo o que eu queria, estes portugueses sabem das coisas! Li atentamente a longa matéria de capa. Eles entrevistaram doutores no assunto. “O papel higiênico simboliza controlo”, declarou Niki Edwards da Universidade de Queensland. E com receio de perder o controlo, as pessoas saem à caça. “Usamo-lo para arrumar algo (?), para limpar. Lida com uma função corporal que de alguma forma representa um tabu”.
Me disse pouca coisa o Dr. Niki. Fui adiante. O próximo entrevistado é da Universidade de Melbourne, Dr. Brian Cook a falar do boom da mercadoria. O fenômeno, ponderou Dr. Cook “é uma forma de reação ao stress”. Huuumm...será? Reagimos ao stress comprando papel higiênico, ótimo! Epíteto estava certo, trata-se de um mundo por demais estranho. Com a palavra agora o Dr. David Savage, da Newcastle Business School: “Penso que este é o produto perfeito. É um daqueles que podemos reforçar o stock com a garantia de que acabaremos por lhe dar uso um dia”. Nem tão perfeito assim, Dr. Savage. Ouça as palavras de um árabe mulçumano ao visitar a China no ano 851: “os chineses não são cuidadosos com a limpeza, não se lavam quando fazem suas necessidades; mas apenas se limpam com papel."
Continuei a pesquisa trilhando os labirintos da Matrix e por força de similitudes da palavra chave “papel higiênico”, cai numa página a arrolar os sinônimos do dito cujo. Fique espantado com a irreverência e criatividade dos brasileiros. Caneco, bufante, roscófi, botico, frinfa, jaca, fiorino, ratiofly, forebis, furinho, alcofa, boca seca, terceiro olho, buzanfa, sim senhor, anilha...uma página inteira deles. Meu preferido? Ratiofly. Só para comparar, procurei os sinônimos que os portugueses usam para a redonda palavrinha e fiquei decepcionado: bunda, ânus, bumbum, cagueiro, cóccix. Eis a diferença entre as culturas.
Passei a tarde trabalhando arduamente para organizar as informações. Mas fui dormir tranquilo. Um bom sono para afiar as ferramentas e amanhã levantar bem cedo e escrever a crônica das crônicas. Falta apenas o título. Pensei em “O estranho caso do papel higiênico”, o que vocês acham?