OS RICOS BASTIDORES DAS FOMES
Depois de bater os olhos numa fotografia do meu acervo...
...começo minha crônica dizendo que quando somos crianças, naquela nossa curiosidade encantadora, apenas perguntamos.
Conforme passamos pelo tempo, ainda jovens, questionamos e muito acreditamos, queremos aprender com fé.
Mais lá adiante, passamos a não perguntar mais porque o entendimento nos sai pelos poros.
A juventude tem uma boa dose de ingenuidade poética muito fácil de se conquistar...antes de a gente entender.
Aqui, então, vou tentar verter a dor cidadã de entender.
Faz algum tempo que eu, defronte de TODAS as telas das artes reais e virtuais, ainda me perguntava "por quê?".
A cada tragédia social anunciada em solo brasileiro, a cada falta de tudo que tão bem conhecemos, a cada perplexidade em meio às telas encenadas nas novelas e no cinema brasileiro, as que sempre levaram via arte, para aqui e para o mundo, a mesmice triste da nossa inimaginável condição social vivida visceralmente, essa que vemos e que infelizmente tanto se agigantou pelo tempo com se fosse um troféu de sociedade forte.
Confesso que, às vezes, eu me sentia triste ao ver que a poesia artística era extraída das nossas tantas dores, dos nossos déficits humanísticos em tudo, da nossa violência , dos nosso fracassos políticos sequenciais, todos transfigurados em versos ovacionados de "Multicultura Cidadã sincrética" e de "Dignidade Humana" irrefutáveis que, diziam, encantavam o mundo e agigantava o turismo internacional.
Era o que se pregava e eu achava a denominação linda totalmente desconectada da conotação de beleza no "real surreal" que meus olhos viam assustados.
Seria a miséria gerando PIB?
Ou seria eu o problema a não entender a beleza do que eu não captava?
Que insensibilidade seria aquela, tão perenemente a me perturbar?
Eu tinha medo de ser mal compreendida, então, no meu silêncio instigante eu perguntava a mim mesma:seria artisticamente digno e bonito mesmo essa dádiva de não se ter moradia digna e segura, de se enxergar a infância e a terceira idade abandonadas, de não se ter alfabetização, nem saneamento básico, nem saúde,nem educação,nem segurança alimentar, nem segurança pública, nem empregos?
De não se ter direito à vida, ainda que simplesmente vivida?
E mais:
"Como convencer uma situação social de sua infelicidade se nunca lhe fora dada a oportunidade de ter a real felicidade cidadã para a devida comparação das vivências?"
O que seria felicidade social, afinal?
O tempo passou.
Várias tragédias se somaram ao nosso solo doente como se várias comorbidades acumuladas e incuráveis atingissem um corpo já moribundo pela crônica doença maior vigente, a corrupção , quiçá incurável também, articulada tão sistematicamente.
E eu ali, ainda querendo entender...por que os mesmos temas nas telas das novelas e cinemas que vendiam como vitória a miserabilidade agigantada.
Um dia, sob meu espanto, eu me deparei com uma imagem fotográfica da nossa judiação social que descrevo, a do nosso abandono sempre maquiado, num forte e belo colorido tipo o de Frida Kalo, que colore uma Latino -América igualmente de impressionar, num concretismo de tela a adornar a parede dum restaurante brasileiro fora do Brasil, do lado dito primeiro mundo.
De preços impagáveis ao mais afortunado turista, sob a mesma visão que gera lucros e dividendo aqui e ali...por todos os cantos e becos do planeta.
Olhei aquilo com dor no coração: de súbito, ali era o meu país estatelado naquela parede, país carente de tudo mas dando lucros por todos os lados do mundo.
Um país que comercializa a miséria de todas as formas.
Confesso: senti um incomodo que não sei explicar.
Talvez culpa ou vergonha...como é de costume se fazer por aqui, quando uma sociedade se perde de si mesma: alguém tem que ser o culpado e pagar as contas das vergonhas acumuladas.
Registrei uma fotografia da tela na parede e a guardei no arquivo do software do coração...daqueles que instantaneamente nos fazem entender tudo. Saí correndo dali.
O tempo passou mais um pouco e agora nos trouxe um novo visitante invisível e desconhecido,coroado pela Ciência de Coronavírus.
Um turista infectante, cidadão do mundo, vindo de fora e bem assustado com o que encontrou por aqui, embora pronto a visitar o tudo...das tendas aos palácios para fazer seu ciclo de festa.
Ao bater meus olhos nas casinhas coloridas dos morros, as da foto da parede, entendi que hoje passam a ser luxo em meio ao cenário da agigantada população das ruas...
Todos os "responsáveis", então, correm para re-maquiar o que continua sem ser feito...pelas dignidades humanas que tanto prezam.
Todos querem visibilidade,então, fazem discursos doutos e empoderados.É de encantar apenas aos que ainda acreditam.
O dinheiro MACRO que até então não tinha...reaparece para tudo.
O dinheiro MICRO é distribuído per capta sob um valor que talvez compre dois sorvetes ao mês com direito a um pãozinho.
A minha tela de sentimento: uma indústria das mazelas humanas implementadas a lucrar juros e dividendos pelos tempos.
Caixas d'água a "toque de caixa" substituem o saneamento básico negado de gerações a gerações às comunidades e aos moradores das calçadas. Talvez ainda rendam votos.
-Fiquem em casa!-é o "toque de recolher" dos que, nos pódios, garantem se preocupar com "vidas". Fico feliz, mesmo sem acreditar.
A educação sanitária, então, é dada em rápidos cursos supletivos do tempo perdido, por todas as telas, sob um cenário de abandono apocalíptico: aprender a lavar as mãos, a tomar banho, a lavar os alimentos...a não tossir sobre pessoas, a ter etiqueta sanitária...essa última a parte mais curiosa do todo.
Hospitais de campanhas são montados nos onerosos campos de futebol.
O cenário ASFIXIADO de cuidados crônicos é mais triste que a tela fotográfica da minha parede que aqui inspira meu texto.
O vírus coroado, o que circula e asfixia durante sua jornada turística, não acredita no que vê...nunca viu nada igual.
Não sabe se fica ou se vai embora sensibilizado com a tristeza do que encontrou pelos caminhos.
E diante de tudo, eu que não pergunto mais nada, a mim apenas me resta concluir que devo ter envelhecido.
"Meu Deus...como é doído compreender o tudo de todos os ricos bastidores das tantas fomes."