A praga dos fraquejados

-- Patrão, a praga já se espalhou pelas fazendas vizinhas. Até na nossa matriz do Norte. Muita gente doente, e muitos mortos. Pararam tudo, não tem mais plantio, não tem mais colheita, não tem mais secagem de grãos, não tem mais comércio.

-- Tão exagerando. Como é possível? Acho que tão mentindo. É coisa desse pessoal abolicionista. Assim não vai ter safra. Vão se arruinar! Se não trabalham, o que é que andam fazendo?

-- Estão trancados em casa, tentando evitar o contágio. Mas a praga é ladina, não dá pra saber quem está disseminando. O cabra parece são, está contaminado e contaminando.

-- E os patrões de lá? Também estão trancados em casa?

-- Estão, mais que o povo. A praga não tem compostura. Acomete o lacaio e o patrão do mesmo jeito. Ainda bem que os hospitais, na hora de internar os casos mais graves, selecionam.

-- Ah, ainda bem. Diante de tanta insolência, pelo menos isso. Mas não resolve a interrupção na produção e no comércio. Vão quebrar. Tem que trabalhar. Os que se recusarem a trabalhar por medo, é rua com eles. Tem muitos outros que estão querendo o seu emprego.

-- Acho que lá os patrões estão apostando que tudo passa logo. A malta tá em pânico, correndo aos mercados, os patrões estão vendendo os estoques, estão fazendo gordura econômica pra aguentar os próximos meses, até que tudo volte ao normal.

-- Será que volta ao normal? Se o mercado quebra, minha liderança vai junto.

-- Vai voltar. É preciso comer, é preciso viver. A vida continua. Apesar dos mortos.

-- Ah, os mortos! São na verdade os mais velhos, os já doentes, os mais pobres. Não têm valor no sistema produtivo. Não produzem, pouco consomem. São descartáveis. A praga está nos fazendo um favor, livrando-nos de um fardo social sem ter que carregar isso na consciência. Nem é preciso acabar com a saúde pública.

-- É verdade! Então talvez seja mesmo melhor não fazermos quarentena nenhuma. A praga vai fazer um expurgo, uma limpeza natural. Vamos nos livrar de um peso econômico, os velhos e os fracos. Só fazem lotar os hospitais, são uma sangria no nosso orçamento. Mas a praga também mata os velhos das famílias dos patrões.

-- Damos um jeito. Os patrões podem internar seus velhos nos hospitais da rede privada. Vamos providenciar isso aí. E tá na hora de entendermos que lugar de velho é mesmo no cemitério. São um estorvo.

-- Então não vamos fazer quarentena?

-- Não! Pelo contrário. Vou pessoalmente estimular as grandes multidões, vamos disseminar a praga, quanto mais doentes melhor. E vamos punir quem alegar questões de saúde pra não querer trabalhar. Vamos demitir, vamos cortar salários...

-- Mas patrão, não receia que a praga fuja de controle, mate mais gente do que as previsões?

-- Isso seria bom pro mercado, pra economia. Ia ser um sacrifício desprezível pelo bem da saúde do mercado. Ia melhorar a taxa de emprego, o PIB per capita...

-- Saúde do mercado?

-- É claro, é isso mesmo! A saúde do mercado é que importa. A saúde do povo depende dela. Só não podemos deixar que o povo enxergue isso. Vamos insistir que é só uma gripezinha.

-- Não tem medo de pegar essa praga?

-- Eu não! Isso não! Não tem praga que me pegue nesse mundo de fraquejados!