Amostra Grátis

A quarentena é um ensaio. Conclui isso sob uma fúria ao ler a frase que um amigo escreveu, dizendo que “são tempos difíceis para quem sente saudade”. Em seu relato, ele falava de não poder visitar os avós, de não tocar os amigos...

A quarentena não nos afasta. Em toda sua noção biológica de prevenção e combate ao vírus que enfrentamos hoje com muito custo e sofrimento, a quarentena é um preparo: ela já nos mostra o peso da ausência. Todo afastamento social que agora nos propomos e vivenciamos escreve em nós recortes do afeto impossível nessa hora.

Em nossos confinamentos restamos nós com as saudades que nem imaginávamos que sentiríamos por algumas pessoas. As quatro paredes de nossos cômodos são as confidentes das agruras de algumas solidões nossas, de algumas lágrimas, algumas leituras, loucuras e até os exercícios que nos recusamos por tempos. A quarentena nos deu uma amostra grátis do sabor da morte, do gosto da partida.

É sempre uma sensação de que tudo foi insuficiente: abraçamos pouco, beijamos pouco, visitamos pouco, conversamos pouco e mais um monte de coisas que fizemos, aliás, escolhemos fazer em baixas frequência e intensidade, e que agora são memórias insatisfeitas, dotadas de epitáfios em tom de tristeza que ecoam através do silêncio das ruas.

Em nosso estar só, nossas consciências nos acusam dos programas de extensas horas que arrumamos para não estar em família; nossas consciências nos lembram dos dates, dos filmes e jogos a sós, sendo um tempo hoje desejado de companhia.

É esse o nosso ensaio: um distanciamento que sabemos que acabará em algum momento e que tem um gosto de partida, já mostrando como será quando a morte nos levar alguém querido, que não mais veremos nem nada. Aí sim será um momento difícil para quem tem saudade. Que após a quarentena, dentro da euforia dos reencontros, saibamos bem escolher estar com todas as pessoas queridas o máximo possível, porque quando a distância não for pela quarentena mais, precisaremos lidar com as lembranças de nossa falta de dedicação e seremos obrigados a restringir o beijo, o abraço e o encontro somente ao desejo e à lembrança.

Bom ensaio a todos!

Crônicas de um Ignorante
Enviado por Crônicas de um Ignorante em 24/03/2020
Reeditado em 24/03/2020
Código do texto: T6895826
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