Em quarentena, com os amigos
- Não terei o que fazer nestes quinze dias de quarentena, Ilustre. Acho que vou enlouquecer. Aqui em Pindamonhangaba quase todas as lojas estão fechadas. Serei obrigado a ficar em casa, preso, olhando para o nada. O governador já decretou o fechamento de inúmeros estabelecimentos comerciais até a primeira semana de abril. Irei enlouquecer. Duas semanas trancafiado, em casa, sem ter o que fazer... E você, Ilustre?! E você?!
- Eu!? Não me preocupo. Não me incomodo em ter de permanecer em casa nas próximas duas semanas. Nem um pouco. Terei muitos amigos comigo. Brasileiros, argentinos, americanos, portugueses, espanhóis, franceses, russos, alemães, suecos, dinamarqueses, poloneses, japoneses, gregos, italianos. Durante os próximos quinze dias, conversarei com Platão e Aristóteles, dois sábios gregos que muito já me ensinaram e que muito ainda têm para me ensinar. E de Sófocles e Ésquilo, Eurípedes e Aristófanes, quatro geniais contadores de histórias, ouvirei contos fantásticos. O Ésquilo já me narrou a história de Prometeu; Sófocles já me falou de Édipo. Pedirei a estes quatro contadores que me contem algumas histórias que já me contaram e outras para mim inéditas. E retomarei a minha conversa com os romanos, conversa há muito tempo interrompida. Conversarei com Ovídio, Cícero e Virgílio. Este me contará histórias fabulosas dos deuses romanos. E passarei bons momentos em companhia de Boccaccio e Dante. Com eles terei um bom dedo de prosa. Boccaccio sabe como se vive durante uma peste: na companhia de amigos. Suas histórias inspiram-me esperança e me divertem. Ele é jocoso. Espirituoso. E Dante... Dante me dará relatos, que dele já ouvi, de uma extraordinária, fascinante aventura que ele, ciceroneado por Virgílio, empreendeu no Inferno, no Purgatório e no Paraíso. E terei uma boa prosa com Manzoni e Lampedusa e Svevo. Ah! Esquecia-me: Homero. Ao falar dos gregos, dele eu não me lembrara. E nem de Hesíodo. Lembrei-me a tempo... Zeus não me perdoaria se deles eu não me lembrasse. Deles eu pedirei um relato das aventuras dos deuses e dos heróis gregos, aventuras que eles sabem contar melhor do que ninguém, com o talento que lhes fez a fama. A da guerra de Tróia é extraordinariamente espantosa. Acomodado numa cadeira, ouvirei as palavras de Santo Tomás de Aquino, e as de Santo Agostinho, e as de São Gregório de Nazianzo, e as de São Clemente de Alexandria, e as de São Bernardo de Claraval. Estou feliz. Você não pode imaginar o tamanho da minha felicidade. Terei estes amigos, divinos amigos, na minha casa, fazendo-me companhia pelos próximos quinze dias. Deles ouvirei palavras confortadoras, palavras de sabedoria que Deus lhes inspirou. Serão horas e horas de paz. E dos Estados Unidos vieram visitar-me o Twain, e o Melville, de quem já ouvi uma emocionante aventura de caçada à uma baleia. E da terra do Tio Sam também estarão em minha companhia o Whitman, o Emerson, o Henry James, o Faulkner. E da França vieram o Proust, o Balzac, o Hugo, o Stendhal. E da Espanha, o Cervantes, o meu querido Miguel de Cervantes Saavedra, que, em três outras ocasiões, narrou-me as divertidas peripécias de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pança. Você já ouviu falar da história dos moinhos-de-vento? É divertidíssima. O Cervantes é a única pessoa no universo que a sabe contar. E da Suécia recebi a visita de Selma Lagerlof. São tantos os meus amigos, que não posso me lembrar de todos. Vêm-me à memória o nome de Suetônio, romano, e o de Edgar Allan Poe, americano. Poe já me contou muitas histórias extraordinárias, do grotesco e do arabesco, tão extraordinárias que, se eu as contar para você, você coçará a cabeça certo de que é impossível uma pessoa só criar tantas aventuras inacreditáveis. E da Polônia estará comigo o Sienkiewicz. E da Dinamarca, o Andersen e o Pontoppidan. E da Romênia, Noica e Ionesco. E da terra da Rainha Elizabeth, um exército de amigos: Shakespeare, Stevenson, Conan Doyle, Dickens, Kipling, Defoe e Swift. Todos eles são bons contadores de histórias. Deles já ouvi as aventuras de Macbeth, Doutor Jekyll e Mister Hyde, Sherlock Holmes, David Copperfield, Mogli, Robinson Crusoé, Gulliver. E muitas, muitas outras aventuras. E deles ouvirei dezenas de outras. E esquecia-me Rabelais. Um amigo francês que, certa vez, narrou-me as aventuras de Gargântua e Pantagruel. E esquecia-me de outro francês: Moliére, homem divertidíssimo, dono de uma espirituosidade incomum. Irá me divertir, e muito. Irei rir, e rir muito. E gargalhar. E nas minhas conversas com ele o tempo irá parar, literalmente. Estou a imaginar, e a me divertir enquanto imagino, uma conversa minha com Moliére, Cervantes, Aristófanes, Boccaccio, Shakespeare, Swift e Gogol. Gogol! Russos! Reunidos na minha casa, veja você, Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Tchekov, Pushikin. Todos eles donos de inesgotável repertório de contos empolgantes. E da Alemanha vieram o Goethe, o Kafka e o Schiller. E não posso me esquecer dos meus amigos latino-americanos: Borges, Rulfo, Garcia Marquez, Cortazar, Arguedas. Ah! Esquecia-me! Winston Churchill, um dos mais nobres súditos da Rainha Elizabeth. Homem de fibra. Destemido. Dono de uma oratória que só se rivaliza com a do... E esquecia-me: Demóstenes, o grande Demóstenes. Demóstenes e Churchill, meus amigos, na minha casa. E do Oriente vieram, da Índia, Tagore; do Japão, Yasunari Kawabata e Yukio Mishima. São tantos os meus amigos, que eu não posso nomeá-los um por um. É impossível. E de Portugal, Camões. Você o conhece? Ele me contou a história do Gigante Adamastor. E vieram, também, o Gil Vicente, o Herculano, o Eça, o Camilo. Estou muito feliz em tê-los na minha casa durante os próximos quinze dias. E quais outros amigos estarão comigo? o Asimov, o Karel Capek, o Bradbury, o Sturgeon. O Le Carré e o Forsyth. E o Koestler. E o Leibniz. E os meus queridos amigos brasileiros. Queridos e amados. O Machado, o José de Alencar, os irmãos Azevedo, o Gustavo Corção, o Lobato, o Gonçalves Dias, o Herberto Sales, o Meira Penna, o Oliveira Lima, o Bonifácio, o Nabuco, o Rui, o Cyro dos Anjos, o Coelho Neto, o João Camilo, o Reale, o Graciliano, o Gilberto, o Padre Antonio Vieira, e muitos, muitos outros, muitos outros amigos queridos, amigos cujas amizades estimo imensamente. São amigos para sempre. Estou feliz em tê-los ao meu lado, na minha casa, fazendo-me companhia neste momento de tensão e medo. Amparam-me. Confortam-me. Orientam-me. Tranquilizam-me. Contar-me-ão histórias extraordinárias passadas em outras eras, em outros povos, em outros mundos, em outros universos. Histórias de um passado distante e histórias de um futuro longínquo. História de reis e rainhas, de heróis e vilões, de criaturas divinas e criaturas demoníacas, de entidades celestiais e de monstros. Estou feliz em tê-los ao meu lado nesta hora tão escura.