RECOMEÇO
Os olhos choraram. Eram os corações que derramavam lágrimas pela perda dos seus. Não havia como vê-los, como abracá-los, como acompanhá-los no último adeus.
Quem não acreditava passou a crer. Quem fazia descaso passou a pensar nas questões propostas. Nas lágrimas roladas os olhos derramaram suas dores pela perda de seus amores.
Os passos foram avisados. Foram esclarecidos sistemas de contágio, recursos para não contaminação, atitudes necessárias para a não disseminação do mal.
Portas foram fechadas. Janelas travadas. Vias interditadas. Ruas tornaram-se desertas. A solidão começou a invadir as almas. Olhos à beira do precipício, com sorrisos forçados, crenças desfeitas e dores intermináveis.
Pessoas lembraram que possuíam família. Filhos começaram a conhecer seus pais. O retorno ao centro da vida teve início inédito. O diálogo iniciou de forma tímida dentro das casas e apartamentos, possibilitando a descoberta da fala. Um novo jeito de ver a vida começou a ser disseminado dentro da sociedade. Descobriram o valor do sorriso, o gosto do café da manhã, o almoço compartilhado por todos da mesma residência onde, antes, nem sabiam que existiam tantas ideias e opiniões importantes e valorosas.
Fazer atividades simples como a oração pessoal passou a ser levantada com o bandeira para aceitação da nova situação. Voltar a si mesmo e se conhecer foi colocado em questão. Meditar, movimentar, trabalhar passou a tomar novos rumos. Questões de trabalho foram levantadas como novas possibilidades e estudar ganhou um novo revés. Ser humano tomou proporções gigantescas, ser generoso e solidário, resultado de um novo olhar para a humanidade.
A saudade passou a fazer parte da condição humana. Abraços e sorrisos aconchegantes foram diluídos pela distância e de repente ficou proibido visitar os seus. Fins de semana na casa dos avós deixou de existir e os corações começaram a perceber a dor da ausência. O telefone passou a ser amigo para ouvir do outro lado a voz da saudade. O "como está" e "que bom te ouvir" tomou proporções de emoção interna, de sentimento de alegria e entusiasmo.
Nos olhos podia se ver o medo. Ansiedade por onde estaria passando, onde estaria tocando, se havia sinais da tragédia diluídas em gotículas invisíveis do inimigo mortal. Tomada de consciência foi questão de ordem. O que estaria fazendo para cuidar do outro, dos seus, do próximo. Isolar-se socialmente tornou-se uma dor a ser compartilhada dentro do próprio lar e acompanhar esta evolução, responsabilidade de todos.
A busca desesperada por informações tomou conta dos celulares. Informações desencontrada, inverdades, disseminação do terror e também reconhecimento da falência dos meios de comunicação fizeram parte deste tempo. Olhos perscrutavam as telas para filtrar em que poderia se apoiar para se manter informado. Até que ponto era verdade ou mesmo manipulação social e política.
Os sentimentos de perda começaram a tocar o coração. Perda do que estava por perto. Descobrir o que estava se esvaindo foi a maior descoberta da humanidade. Esqueceram por um período a ganância pelo poder e perceberam a beleza da vida nas pequenas coisas. Um sorriso, um toque de mão, um abraço caloroso e a esperança de dias melhores registraram a maior procura dentro de cada coração.
A natureza passou a responder com exuberância. A lua passou a ser vista com mais frequência, lagos mais límpidos e flores pela natureza. Resultado de reclusão, de reconhecimento da impotência diante de um ser invisível que aterrorizava pelo simples sinal de calor acima do normal.
A razão passou em segundo plano. E o encontro pessoal, armamento potente contra a insegurança e o medo. Medo pelo que viria, pelo que poderia ser e o que deixaria de contribuir se não se permitisse mudar.
E houve muitas mudanças tão intensas e verdadeiras que todos puderam dar as mãos e começar de novo, sendo novo, num tempo novo e na esperança de recomeçar.