QUE BICHO É ESSE?

Devemos evitar confundir desencargo de consciência com solidariedade, e oportunismo com generosidade.

Claudinho Chandelli

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Os cientistas e demais estudiosos não chegam a um consenso.

Muitos dizem que ele foi criado; mas há também os que defendem que sua existência veio a ser espontânea, natural, há algumas centenas de milhares de anos – e que, ao longo da história, ele vem apenas sofrendo mutações; e a cada mutação sofrida, se torna mais perigoso, mais indecifrável e mais letal.

Gostaria de está falando do novo coronavirus – que também se encaixa, até certo ponto, nesse preâmbulo.

Mas, como diria Manuel Bandeira, “o bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem!”

O pansinistro do coronavirus coloca diante de nós uma irreverente e provocativa ironia: sermos forçados a usar uma máscara (a material) temporariamente pra podermos reconhecer a necessidade de retirarmos outra (a moral) usada constantemente.

Sim! É possível – e o pansinistro está mostrando isso.

É possível discutir questões, de fato, relevantes a toda a humanidade colocando tais questões como o assunto principal e acima de paixões partidárias ideológicas ou dogmáticas. É possível sim!

É possível frear o consumo, diminuir os vários tipos de exploração do homem sobre o homem (como o ritmo e as condições de trabalho), reduzir preços (diminuindo o ágio), reduzir juros (domando a usura)... É possível sim!

É possível convencer pessoas (ricos e pobres, patrões e empregados, conservadores e progressistas, céticos e dogmatas, cultos e iletrados...) de que o melhor pra todos é todos adotarem o mesmo estilo (o confinamento) de vida – e, o mais curioso: a experiência (ainda em curso) mostra que isso pode ser feito com um nível relativamente baixo de conflitos e resistências, e de modo que todos (mesmo os que não podem aderir) concordem que isso é bom para todos; olha que ideia comunista que tem obtido sucesso nesses últimos dias! É possível sim!

É possível votar leis e projetos em tempo recorde; fazer que o público tenha prioridade sobre o privado e o coletivo, sobre o individual; o imaterial se sobreponha ao material, ou, como diria Hobsbawm (1992), “lembrar que as pessoas devem vir em primeiro lugar e não a produção”. É possível sim!

É possível fazer com que a fé se sobreponha ao fideismo, e a necessidade de uma solução geral, acima da bandeira denominacional. É possível sim!

É possível, enfim, manter abertas as entradas do coração, embora sejamos obrigados a fechar as fronteiras geográficas. É possível sim!

Mas, a despeito de toda a empatia e sensibilidade que o momento exige, devemos evitar ingenuidades e/ou dissimulações. É preciso evitar confundir desencargo de consciência com solidariedade, e oportunismo com generosidade.

Ora, se todas as medidas – como diminuir a exploração sobre os trabalhadores informais, como entregadores de aplicativos, por exemplo – em curso ou invés de levar a humanidade (leia-se: economia) ao colapso, é exatamente o que a salvará, por que apenas nesse momento elas são possíveis?

Por que o mundo não se une com o mesmo empenho, a mesma solidariedade e o mesmo espírito de renúncia para acabar com o analfabetismo e a fome no mundo, por exemplo? Seria porque, por uma daquelas coincidências antrópicas, os “vírus” do analfabetismo e da fome atacam classes específicas enquanto o outro (da covid-19) é imparcial – ataca (ricos e pobres) indiscriminadamente?

Não seria mais prudente e sensato que toda a humanidade estivesse unida não pelo medo de morrer, mas pelo “simples” prazer de viver – e “viver em abundância”?

Ora, quando o medo de morrer é mais eficaz para nos unir do que o prazer de viver, convenhamos, isso não é empatia, é covardia; é egoísmo disfarçado de altruísmo.