O Anjo Exterminador e os limites da civilização
O ano é 1962. O local, o Teatro de La Ciudad, Cidade do México. No palco atores encenam a ópera Lucia de Lammermoor de Gaetano Donizetti, baseada no romance de Walter Scott – A noiva de Lammermoor. Na plateia que lota a majestosa sala e aplaude exultante o espetáculo em três atos, 20 madames e cavalheiros da alta burguesia mexicana aguardam com certa ansiedade o gran finale para cumprir o segundo e prazeroso programa da noite: estavam todos convidados para a recepção no palacete do casal Edmundo e Luzia Nobili, na Rua da Providência.
O filme, O Anjo Exterminador de Luís Bunuel começa, na verdade, com os empregados do casal, responsáveis pelo serviço do banquete, abandonando a mansão, sob protestos e súplicas do mordomo. Por que saíram todos? Não se sabe. Surrealismo é assim, avesso à lógica e à necessidade de explicar tudo. Não seria, por acaso obra do Anjo Exterminador livrando a classe inferior do que viria a seguir? Também é uma hipótese. Obra de arte está sempre aberta.
Nas cenas que seguem os nobres convivas sobem as escadas de mármore da mansão dos Nobili, elegantérrimos em peles, fraques, cartolas. Entre eles a intérprete de Lucia, na ópera, e o Maestro. Sobem duas vezes pois a cena é repetida, outra pegadinha de Banuel: repetir cenas. Tudo é suntuoso neste ambiente da burguesia exalar seu charme. Lustres enormes, candelabros e uma haura de transcendência emitida por incontáveis e raros objetos arte, revelam a finesse e o alto gosto dos anfitriões. A elegância e a etiqueta reinam nas relações daquele que galgam o ápice da evolução humana. Terminado o faustoso jantar são convidados a passar para a sala contígua.
Entre taças de champagne francês, apreciam uma sonata de Paradisi executada no piano por Blanca. Na peça The Cocktail Party, T.S.Eliot já anotava que a incomunicabilidade é o mote em qualquer festa, que dirá uma inventada por um cineasta surrealista. Os diálogos são entrecruzados, cortados e truncados. A câmara democrática vai captando as conversas, não existe ator principal. Houve-se coisas tipo “Acho que o povo é mais insensível a dor. Já viu um touro ferido? Impassível”.
A noite avança, dá 3, 5h da madrugada e ninguém toma a iniciativa de ir embora. Os convidados cansados tiram os casacos para se acomodar pelos sofás e deitar nos tapetes. São atormentados por uma fatal situação: não podem sair da sala em que se encontram, nem para a sala contígua onde jantaram. Mas por quê não podem? O que os impede? De novo, o Anjo Exterminador ou o non sense. Tanto faz. Importa que estão todos confinados numa pequena sala sem água e comida. E a sequência é o progressivo naufrágio civilizacional dos refinados burgueses.
Aliás, “O Naufrágio da Rua Providência”, segundo Banuel, seria o título inicial do filme. A ideia teria origem no quadro “A Balsa de Medusa”, de Théodore Géricault, por sua vez inspirado no naufrágio real de uma Fragata francesa em 1816. Dos 146 que tentaram se salvar numa balsa improvisada, só 15 sobrevieram. A barbárie tomou conta na balsa, uma guerra de todos contra todos pela sobrevivência.
Em frente à mansão forma-se um aglomerado de curiosos e autoridades. Policiais tentam entrar sem sucesso. Ninguém consegue transpor o portão aberto. Tentam, em vão, até a inocência de uma criança. O Anjo é implacável.
Na sala confinados no tempo e no espaço, sem a distância que mantém apaziguados os animais, a pequena camada do verniz civilizacional desaparece, liberando todos os demônios interiores. A caixas de Pandora dos inconscientes são abertas e as tiranias da intimidade afloram de modo peculiar em cada ego. Passagem imediata de Eros a Tanatos. A escassez de alimentos e água potencializa ofensas, o ódio, a intolerância, a mesquinhez, a hipocrisia, a violência, a maldade, o assédio sexual. O mal está instalado. No limite da fome três ovelhas descem as escadas e seguem direto para a sala, sob olhares de espanto e alívio. São logo sacrificadas e assadas. Objetos de arte e violoncelos servem de lenha. Três convidados não resistem ao apocalipse, um velho por doença – alguém jogou fora seus remédios – e um casal apaixonado que comete suicídio. O amor não cabe na sala.
O Anjo Exterminador ofereceu a chave para a libertação dos seus confinados, antes da tragédia final: a repetição. Uma das convidadas percebe em determinado momento que todos estão exatamente na mesma posição quanto Blanca executava a sonata. Pede para ela repetir a música e para os demais repetirem seus atos. Deu certo. Saíram todos jubilosos e aliviados para a rua.
A cena seguinte é o final de uma missa na catedral, encomendada para agradecer a Deus pela epifania da libertação. Todos os convidados sobreviventes assistem o culto ao pé do altar. Os três padres, após a benção final, dirigem-se para a porta lateral da igreja. Mas não conseguem transpor os umbrais. O padre disfarça “por que não saímos depois dos fiéis”? A surpresa: olham para a nave e percebem uma movimentação, mas ninguém sai da igreja. Estão confinados.
Duas cenas intrigantes no final do filme. A primeira, uma revolução acontecendo na praça em frente à igreja. A polícia atira para matar contra o povo insurgente. Cena totalmente fora do contexto. Quem sabe para mostrar que existe uma história, fora do não-tempo confinado dos burgueses. Na outra um rebanho de ovelhas se dirige para dentro da igreja. O Anjo exigiu mais sacrifício? Carne para os crentes assar, talvez com a queima de imagens sacras.
Símbolos religiosos abundam no filme do ateu Bunuel. A começar pelo título. O Anjo Exterminador, do Velho Testamento, é o enviado de Deus para eliminar a humanidade desviada. No Êxodo, por exemplo, ele recebe a missão de matar os recém nascidos filhos de egípcios. O Divino pede aos israelitas marcarem a porta para orientar o Anjo, todos devem permanecer reclusos em suas casas, da mesma maneira que no filme, embora por motivos diferentes. Já no início, na sequência dos créditos, aparece a imagem fixa das arcadas góticas de uma igreja e o canto triste de um coro. Um dos convidados se chama Christian. Os cordeiros, que parecem ter vindo direto do Velho Testamento junto com o Anjo para serem sacrificados. Na sala em que o grupo é confinado, três imagens enormes assistem a tudo: São Francisco de Assis, o Santo da humildade e da pobreza; a Virgem Maria, a misericordiosa, triste com a condição humana e o Anjo Exterminador, que está ali para agir, conter a hubris dos aristocratas.
Em entrevista, Bunuel, crítico feroz da hipocrisia burguesa, negou aspectos morais no filme. O mesmo aconteceria com trabalhadores confinados. Trata-se da natureza humana em situações limites. E aí entra Freud, referência de todo surrealista, a solapar visões idílicas da condição humana.
Indo diretamente na fonte: “A sociedade civilizada está perpetuamente ameaçada pela desintegração por causa da hostilidade primária dos homens entre si...A cultura tem de recorrer a todo reforço possível para erigir barreiras contra o instinto agressivo dos homens...Daí seu mandamento ideal de amor ao próximo como a si mesmo ser realmente justificável pelo fato de que nada está tão completamente em desacordo com a natureza humana original”.
De volta à nossa triste realidade de Coronavirus, confinados de novo em casa pelo Anjo Exterminador, prestei atenção ao apelo de Macron aos cidadãos franceses. Patriotismo, pedia ele, solidariedade para vencer a guerra. Não ceder ao pânico, à desordem, à violência. E o pronunciamento terminou com o hino Francês, símbolo potente daquele país. Freud aplaudiria. Em tempos de crises profundas a hostilidade primária dos homens entre si desintegra a civilização. Foi o caso de Florença em 1348, durante a peste negra em que feneceram "a veneranda autoridade tanto das leis divinas como das humanas", segundo relato de uma testemunda ocular chamado Boccaccio.
Também fiquei atento ao mote do Ministro da Justiça: “estamos todos no mesmo barco”. O barco mágico que torna os desiguais iguais. Pura ficção. Neste país extremamente desigual, várias são as embarcações que navegam a tempestade. Os iates grandes, luxuosos e impassíveis dos super ricos, os navios muito bem equipados dos agregados ao Estado, os barcos instáveis das classes médias, as velas de windsurf dos empreendedores de baixo, e as balsas, muitas delas - como a de Medusa - precárias, sem leme, destinadas ao naufrágio.
É muito cedo para prognósticos, aguardemos pelo melhor, confiemos na resiliência da civilização. Mas uma conclusão já podemos tirar. Num país tão desigual como o Brasil a tragédia está antes, durante e depois de qualquer catástrofe.