A CASA DO TEMPO ( I I )
Revirarando gavetas , o arquivo da existência vai aos poucos resgatando-se à minha contemplação:
De repente, uma foto muito antiga.
[ Senti um travo na garganta, não vou negar ]
O cãozinho em destaque chamava-se “Teco”. Mamãe chegara com ele nos braços, empolgada com o presente que recebera de dona “Marixa”, diretora da escola onde ela trabalhava.
A princípio Teco mostrou-se meio constrangido, o que era perfeitamente normal, mas com o passar do tempo integrou-se de tal maneira que era impossível conceber a idéia de família,sem a sua presença.
Tinha o seu lado tinhoso, é claro, e jamais conseguiu um relacionamento amigável com o lanudo “Jeep” que já habitava nossa casa quando de sua chegada.
Travavam brigas homéricas e nem a pronta intervenção de dona Hilda – minha mãe – fazia com que o pequeno Teco desistisse do entrevero.
Jeep, que era de porte maior, levava sempre vantagem e quando a briga cessava, Teco era submetido a chasinhos calmantes dado o seu alterado estado de nervos.
Quando meus pais decidiam “sair na valsa”, como eles diziam, empurravam os móveis da sala e dançavam mirando-se num grande espelho que ficava num dos cantos da parede.Ciumento de sua dona, Teco agarrava-se nas calças do dançarino e , quase arrastado, formava uma espécie de trio de dançantes. O espelho refletia a cena e os risos provocavam em nossa família uma união de gente pobre no material e magnata nas coisas do espírito.
Agora diante de mim esta foto em sépia, descorada pelo tempo.
Teco - o guardião da propriedade - “em posição de sentido”.O portãozinho que dava para o jardim, o centenário cedro, em arco, plantado por minha saudosa avó paterna há mais de um século.
Vêm-me à lembrança:
Os amigos, os compadres, as tias...Recebidos com entusiasmo pelos donos da casa, cruzando - obrigatoriamente - por debaixo daquele cedrinho de onde sempre, escapava assustada alguma pomba ou sabiá aninhada entre os seus galhos.
A calçada disforme, papoulas e cravinas pelas beiradas e ao lado esquerdo as pereiras perfiladas sombreando parte do jardim.
O casarão desengonçado, com sótão espiando o vilarejo, onde vivi mais da metade de minha existência.
Tudo tão distante no tempo e tão vivo nestas minhas lembranças.
Fecho os olhos e aquela casa que não mais existe, ressurge-me neste hoje tão dolorido.
As portas se abrem, o espelho permanece naquele mesmo canto e as imagens vão desfilando,uma a uma no embaçado das lembranças.
Feito um filme em câmera lenta, Os dançarinos miram-se. Teco agarra-se à barra das calças, a música soa de longe !...Muito longe, e os sorrisos estampam-se apenas em imagens, mudos em sonoridade.
Mãos invisíveis apertam-me o peito e umas gotas de colírio disfarçam-me a fragilidade que não consigo evitar.
Num tempo de tantas incertezas, refugio-me na “casa do tempo”.