A CRISE É DE CONFIANÇA

A CRISE É DE CONFIANÇA

Vivemos dias muito difíceis. Dias de grande pressão sobre o ordenamento da sociedade em meio a uma crise sanitária séria. Não nos enganemos: A Ordem Social é uma estrutura frágil, garantida por costumes, acordos coletivos e, sobretudo, visões de mundo. Historicamente, durante guerras e pestes, a mão invisível do Mercado deixa de atendar as demandas das pessoas comuns ou se percebe incapaz de fazê-lo. O resultado é carestia e desorientação coletiva... A autoridade das lideranças é esvaziada à medida que o povo se lhes percebe incapazes de responderem aos desafios do momento. Por via de regra, o colapso de sociedades apresenta como principal característica o estabelecimento d'uma crise de confiança, seja em autoridades e mesmo divindades; seja em instituições e sistemas.

Não me entendam mal. Desconfiar, em certa medida, é um exercício importante. Aceitar verdades sem questionamento, necessariamente, impõe certo abandono da individualidade em nome d'algum idealismo colectivo. É próprio do homem livre exercer sua liberdade questionando as ideias que lhe são apresentadas. É salutar, aliás, pois submete ao escrutínio das opiniões pessoais as opiniões qualificadas de lideranças e/ou especialistas com vias a produzir essa entidade cambiante conhecida por Opinião Pública. Manifestação de achismos superficiais e pensamentos inovadores, a ágora virtual contemporânea ecoa aos quatro ventos as vozes que seguem o seu caudal até o remanso dos consensos amplos e civilizadores. O grande consenso, por excelência, é o Pacto Social, de cujo ordenamento, a despeito das especificidades individuais, uma sociedade se vê constituída sob regras comuns válidas no interior d'um território nacional. Aderir a esse Pacto faz de cada indivíduo um cidadão participante da República em um Estado Democrático de Direito. Sem esse consenso, em continua negociação, a sociedade passa a lutar, militarmente ou não, contra as instituições estabelecidas, buscando substituí-las por outras. Abandonar esse Pacto, por outro lado, é buscar soluções disruptivas que, não raro, são um remédio pior do que a própria doença diagnosticada.

Entretanto, a crise sanitária que atravessamos se mostrou ainda mais grave ao manifestar uma crise de confiança anterior. A despeito do Pacto Social brasileiro ser construído a partir da independência, harmonia e equilíbrio entre três poderes separados, muitos d'entre nós, brasileiros, se acostumaram a desconfiar das instituições do Estado capitaneados por um governo que parece se nutrir do conflito constante contra tudo e todos. N'esse estado de coisas, desconfiar deixa de ser um esforço crítico e se torna uma iconoclastia desenfreada...

No último domingo, quinze de março, multidões ignoraram os apelos para se evitar aglomerações e se reuniram nas principais capitais do país. Eu mesmo, a caminho de minha casa, topei com a manifestação belohorizontina na Praça da Liberdade: Eram centenas -- milhares, talvez...-- de desconfiados. Sim, pessoas comuns, cujas esperanças catalisadas por uma liderança controversa alçada à Presidência da República, vieram às avenidas e praças manifestar sua desconfiança sobre o Parlamento e o Supremo Tribunal e, de quebra, nas recomendações do Ministério da Saúde que compõe o próprio governo.

A rigor, para se confiar n'esse presidente é preciso desconfiar de tudo o mais. Todos mentem, todos conspiram, todos prevaricam, todos traem o povo, menos o presidente-quase-ditador. Somente a autoridade autoritária exerce o poder em nome do povo -- e de Deus, por que não? -- é confiável para essas multidões desconfiadas. Desejosos d'um salvador da pátria, fazem coro a um lunático ressentido e reaccionário.

Mas do que desconfiam os desconfiados? Há tempos o brasileiro duvida de seus governantes. O mais duro golpe, talvez, para a confiança do povo na classe política foi o resultado do conjunto de operações, investigações, delações e julgamentos que compuseram a Operação Lava Jato, a partir de 2014: Centenas de políticos e lideranças partidárias em conluio com empreiteiros e executivos de multinacionais assaltando a máquina pública sob o pretexto de financiar projetos de manutenção no poder... De facto, não admira desconfiarem d'esse povo. Jair Bolsonaro, contudo, transformou o governo do Brasil n'um pesadelo ainda pior do que seus antecessores, a ponto de construir a presente narrativa na qual seu governo não entrega os resultados prometidos por falta de poder. Ora é o Congresso quem atrapalha; ora o Supremo; ora a imprensa; ora a oposição. Sua falta de capacidade é permanentemente relativizada pela acção contrária dos que lhe "impedem de governar". Tudo se torna ideológico. Nada mais é apenas lógico.

Não se admira que até mesmo a pandemia da Covid19 tenha se tornado -- também ela -- uma questão ideológica. Incapazes de confiar nas recomendações do Ministério da Saúde os brasileiros se assumiram ignorantes e irresponsáveis ao participarem das referida manifestações. O ápice d'esta temeridade colectiva foi a participação do presidente -- quebrando, também ele, a recomendação de isolamento em conformidade com o protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde do seu próprio governo -- na manifestação dos seus apoiadores reunidos no Palácio do Planalto. No fim do dia, em entrevista ao canal de notícias CNN-Brasil, Jair Bolsonaro se jactou mais popular do que os líderes do Parlamento e do Supremo sob o pretexto de que as manifestações comprovavam que ele podia sair nas ruas e ser festejado, ao passo que seus pares nos demais poderes da República, não. Questionado sobre a infração ao protocolo da Covid19 imposto pelo Ministério da Saúde, delirante, Bolsonaro minimizou a doença e seus respectivos cuidados profiláticos como "histeria". Na dúvida, duvide-se da própria dúvida.

De certa maneira, a crise que atravessamos não apenas sanitária, sim de confiança. Por falta de confiança na classe política, elegemos um independente apolítico que hostiliza a própria democracia que fez d'ele presidente. Por falta de confiança no Estado de Direito, toleramos um autoritário que flerta com milicianos e exalta a polícia truculenta que deseja combater o banditismo com excludente de ilicitude que, na prática, autoriza o genocídio de favelados. Por falta de confiança no Controle Ambiental, assistimos em silêncio as queimadas nas florestas e fingimos acreditar na denuncias de ONGs como parceiras da degradação ambiental enquanto o governo se ausenta convenientemente da fiscalização da degradação do meio ambiente. Por falta de confiança nas reformas de cunho social empenhadas em incluir todos os filhos d'esta terra na República e sua prosperidade material que muitos, cansados de esperar uma sociedade harmônica e pacífica, passaram a apostar na corrida armamentista e, de novo, na promessa d'um Estado opressor.

É em consequência d'essa falta de confiança generalizada que chegamos a esse momento tenebroso no qual corremos risco de perder milhares de brasileiros em meio a uma pandemia. No momento em que escrevo essas linhas, tudo se coloca como tragédia anunciada diante d'um povo cuja liderança se contradiz a si mesma e a todas as demais instituições. Vivemos na iminência d'um vírus que não é ideológico por mais que os desconfiados digam que é. Não duvido que o resultado macabro d'essa obra sem fundamento seja a ruína de nossa colectividade incapaz de confiar em informações, factos, verdades não manipulados por narrativas obscurantistas. Quando não há mais esperança razoável de bem comum, a força e o oportunismo se impõem. Ou como diz o outro: "Farinha pouca, meu pirão primeiro!"

A crise, caríssimos, não é só sanitária; é de confiança.

Betim - 18 03 2020