Umbral dos Sessenta
Há sessenta dias, parece que foi ontem, a vi dobrando a esquina. A cada sessenta horas, como quem espreita inimigos, o imaginário ia até a soleira da porta da rua e espiava; a cada sessenta minutos, devido a agoniação da espera, os neurônios se agitavam; a cada sessenta segundos, pensamentos vagos, reflexões sobre o encontro com a nova idade. Num átimo de tempo, chamam de microssegundo, em alegoria sonolenta pingou nos olhos e tocou-me a venta, enfim, a resoluta fase dos sessenta. Chegou em pedra e cal. Deu-se então o proêmio do porvir.
Com essa retórica quero dizer que, já sexagenário pensante, resgatei os anos desde os iniciantes. No súbito instante voltei caminhante ao dezessete de março de mil novecentos e sessenta, quando nasci. Nada de relevante houve no ocorrer vivencial da humanidade daquele dia, sua nobreza, creio nisso, se deu só em face ao meu nascer. Afora tal fato, não há nada de valor catalogado. Digno mesmo de louvor, é cediço, há só a criatividade inata às pessoas nascidas no ano 1960 (somos os ratos de ouro no calendário lunissolar dos chineses, piscianos na zodiacal correspondência ocidental).
Em particular, nasci tendo a quinta-feira como pano de fundo, o termo semanal cuja inicial do nome em inglês THUR (de Thursday) deriva da denominação escandinava THOR, nome do guerreiro conhecido como o deus do trovão na mitologia nórdica, filho de Odin, supremo deus do reino de Asgard no norte da Europa e de Jord a deusa de Midgard. Filho de dia invulgar, tive aventuras também incomuns e finais fortuitos, tal qual o deus do trovão. Como ele, ganhei alguma fama, pelo menos quinze minutos (a que todos têm direito). Porém, eu cresci espiritualmente. Quanto a Thor, nem sei se possuía espírito ou alguma outra coisa além do martelo. Ademais, Thursday’s Child, poema inglês, baseado nos dias da semana, pela tradição, associa de modo positivo os nascidos nas quintas-feiras como sendo crianças que terão vida longa e sucesso, sem limitações. É, pode ser. Para além disso, da inquietude dos marcelos auferi cicatrizes oriundas de travessuras. Os marcelos são diferentes, não se emendam com carões nem castigos, mas o mundo seria triste sem eles.
Sendo um dos marcelos, protagonizei muitas peraltices pelo mundo. Uma interessante série de traquinagens na beira do incontável. Álbum completo, com figurinhas quase impossíveis de se ajuntar. Tudo me foi gratificante. Obrigado Senhor pelas manchas no corpo e as marcas no coração ganhas no meu prelúdio. Sou só gratidão. A aprendizagem, por certo, em muito é baseada nas provas dos revezes. Apanhados na lagoa das memórias pessoais, os baques relembram o gostoso sabor da vida bem vivida. A vivência sempre melhorou quando temperada pela dor. Menino querendo ser homem, um lindo início. Homem querendo ser menino, um bom final.
Despertei para a vida muito cedo, mas demorei para engrenar. Só mudei de vida mais tarde. Não me avexei porque queria permanecer mais um tempinho nas alegrias poéticas e bucólicas dos quintais do meu Recife, pegando pitangas, chupando caju e comendo jambos. Na perspectiva hodierna divido-me entre o desejo de ser visível ou alcançar a invisibilidade. Busco, com algum controle, desconstruir o visível e viver na crença intuitiva de que não é necessário aparecer para viver. Não desejo mais traquinar, apenas quero de novo ver o mundo com os olhos harmoniosos da inocência dos principiantes. No começo misturei a vida com amigos e inimigos. Teorias abstratas. Hoje, me restam só os amigos de verdade, principalmente a família, e vivo em paz.
Em suas diversidades, na realidade, os flashes de memória só estreiam em minha memória após já ter ultrapassado mais de mil e quatrocentos dias de vida (do nascer aos quatro anos nada lembro). Ao iniciar o flashback, logo me vieram à mente fulgentes ecos. Quando pisei em campos minados, o Anjo de Deus se expôs e sempre me safei por meio de sua ajuda, com proteção especial. Mesmo espiritual, acho que já tive a graça de vê-lo. Não sei ao certo. Visões e visagens ocorrem. São segredos pessoais e, como tal, não é forçoso aos outros crerem. Vejo-o e com ele converso. Será mesmo? “Quem negará a Deus todo-poderoso a capacidade de enviar-nos seus mensageiros”? Sou fã dessa ideia do padre Paulo Ricardo. A despeito de tê-lo ou não visto, meu anjo jamais de mim se afastou. Tenho outros anjos, cada qual com seus métodos e modos de fazer. Estão espalhados pelos caminhos. Querubins terrestres. São office-boys dos Céus. Dão-me proteção e autoestima, dou-lhes em troca louvores e mais desafios. E, porque benfeitores, me guardam, me regem e me iluminam.
Possuidor de parcos atributos intelectivos, disfarcei e agi por muito tempo com o nariz empinado, escondendo minhas carências. As glórias foram cenas produzidas como scripts cinematográficos. Fantasia teatral. Nublada visão do mundo. No teatro da história - descobri depois - pensar e criar com respeito e motivação moral nos bastidores é melhor do que a vaidade e o cinismo do palco. Vi muitas transformações em pouco mais de meio século de consciência efetiva, inclusive testemunhei perdas de consciência coletiva. Movimentos nacionalistas clandestinos, sem nacionalismo, foi um desses maus exemplos. Um terror deflagrado por minorias massacrantes, de maneira generalizada. Vi gente de joelhos, sem saber por qual razão estavam ajoelhados. Só com o amadurecer, primazia muito acima do meu saber, encerrou-se a ilusão ufanista da juventude e chegou-me enfim a glória e a ênfase da filosofia cristã. Hoje alcancei a distopia, intimamente ligada há anos de experiências, promovendo em minha existência o final dos dias utópicos e fim dos ídolos. Fechei a cortina da soberba. Com desejo incontido renunciei ao senso comum. Tranquei a porta da cobiça de bens materiais, riquezas ou honras e joguei a chave fora. Cotejos da razão me sintonizaram com Deus e clarearam o cotidiano. O sossego sobrepôs a inquietude e em desdobramento sobrevivi aos dias de vaidades e avidez. Desci do palco, no chão identifiquei a oração diária de São Tomás de Aquino - preservo-a doutrinária do meu íntimo. Isso me basta.
Evoluí doando alma e vida, a arte do bem-viver, preconizando tempos melhores. Como o Sol parece desigual, mesmo firme no brilho a cada amanhecer, a espiritualidade é a mesma, mas só com o renascer pessoal ela pode resplandecer. Antes a ignorância deixara-me no escuro, sombrio e tenebroso. O amadurecer em todos os seus aspectos e formas possui o papel redentor na vida dos homens e foi aí que achei a fórmula da alegria, dentro do preceito cristão de ser o menor dos servos. As portas se abriram, deixei a escuridão e vi a luz. Vivo por e para ele, Jesus Cristo.
Agradeço a minha doce Lela e às nossas queridas filhas, Mirella e Milena, pelas bondades e acalantos. Diante da celsitude do amor e misericórdia que de suas almas e corações transbordam, consentiram-me ter mais do que qualquer família poderia sonhar. Somos consagrados e devotos da Virgem Maria e através de sua interseção nos unimos ao seu Filho, em experiência mística que afasta nossas fraquezas e incapacidades. Com quem eu falei nos últimos tempos, espero ter tido talento para mostrar minha gratidão, sobretudo aos que sagram com perdões e orações as vicissitudes humanas. Com quem não falei, seguramente, logo irei aos seus encontros.
Há alegria no ar e tudo está perfeito. Vale a pena celebrar buscando Deus com o olhar de criança - ele gosta de ninar gente grande. Obrigado sessenta anos de vida. Foi bom você ter chegado. Que esse transcendente e lindo alvorecer, início da agenda dos meus idosos anos, continue como um show vivo, sublime, porém modesto como convém, amanhã e para sempre. Amém.