Bondes


Quando criança, eu adorava andar de bonde. E ficava com raiva dos adultos de estribo que falavam mal dos bondes — esses trambolhos no meio da rua —, especialmente porque o dono do nosso estado naquela época, segundo meu pai, parecia muito sensível ao suposto mal-estar da população carioca com os pobres coitados.

Uma pena.

Saíram os bondes, vieram os trolleys, os chifrudos, ônibus elétricos imensos, cujo menor dos males era deixar os passageiros na mão, entre a casa e o trabalho. Quando faltava luz, o centro da cidade virava um pandemônio, com todos aqueles mastodontes largados no asfalto, emperrando o trânsito.

Mas sou obrigado a reconhecer que nos meus treze de idade, por volta de 1961, os bondes começaram realmente a circular mais vazios, e agora a gente só ocupava o estribo de pura farra, para enganar o condutor e viajar de graça. Pegando ou saltando do veículo em movimento, estávamos sempre no carro em que o diligente moedeiro tinha acabado de fazer sua coleta e passado para outro. Nesse meio tempo ele dava um jeito de enxotar a garotada esperta e irreverente, e sempre sobrava uns cascudos para os mais lerdos.

Não tinha problema. Esperávamos o próximo, obrigado a trilhar o mesmo caminho, e recomeçávamos a temerária aventura. Tornara-se um vício em nossa turma de pivetes. Íamos de Marechal Hermes para Madureira de trem, sem pagar a passagem, e ficávamos em frente ao Alpha, glorioso poeira do bairro, onde havia uma parada de bonde, uma festa. E que só teve fim, porque eu contava todas essas coisas em minhas primeiras confissões de filho do século (já leitor de Musset, vejam só), e minha mãe deitou e rolou quando descobriu o meu diário em cima de um guarda-roupa. Fez uma reunião em caráter urgente com as mães dos demais envolvidos, e, naquela tarde, nossa volta a casa foi uma senhora confusão. Ainda não se falava em ditadura dos adolescentes, e nós entramos na porrada.

Mas só encerrei minha carreira de caroneiro enfezado em 1964, quando os bondes da Ilha do Governador foram criminosamente aposentados. Faziam uma viagem linda entre a praia da Ribeira e a do Bananal, pela orla, coisa de cinema. Agora temos apenas os bondinhos tombados do morro de Santa Teresa, e esperemos em Deus que só saiam dali para o céu.*



*Esta crônica foi publicada no sítio da Agência Carta Maior em 30 de outubro de 2005. Vi ontem na televisão que apenas duas composições estão atualmente servindo os moradores do morro de Santa Teresa. As outras (não sei quantas) foram para uma oficina de restauração em Três Rios, já rolou verba para o empreendimento, mas ninguém sabe muito bem como andam as coisas. Começo a temer pelo pior.

[10.10.2007]