O Covid-19 e o absurdo de viver

Estava na fila do pão agora há pouco e vi uma cena de nosso tempo e que reflete uma preocupação geral. Nessa fila do pão dois amigos se encontraram, um deles estendeu a mão ao outro, em sinal de cumprimento, e o outro lhe devolveu um namastê. Segurei o riso e entendi o contexto, mas uma senhora ao meu lado abriu uma regalada de olhos e me pareceu censurar a cena. É compreensível a atitude dessa senhora, afinal, como registra os bons costumes, não se deve negar um aperto de mão. Porém, agora de acordo com a matemática, em toda regra há exceção. A exceção do momento é o coronavírus, ou, para os técnicos da área, Covid-19, que é, ainda de acordo com os especialistas, facilmente transmissível entre nós, os vivos, e por questão óbvia, imagino.

Para espanto dessa senhora, ainda no campo da imaginação, suponho que ela não saiba que uma das formas de evitar o contágio do coronavírus é não apertar mãos desconhecidas ou em suspeição. Ou até saiba — que hoje o Jornal Nacional chega a todo o Brasil, apesar da distância entre os polos e da parcialidade —, mas, ainda assim, pensa ser descortesia ignorar um aperto de mão. Daí o regalar de olhos diante do namastê e do visível espanto.

Vi o regalar de olhos dessa senhora e me solidarizei com ele. Senti-o vivo e de acordo com as especificações das boas intenções, sem traços de malquerer. Os amigos ausentes talvez assimilem diferente a situação e, como ocorreu, riam diante do namastê e do aperto de mão sonegado. Eles, possivelmente, leram o contexto e superaram o desencontro cumprimental, mas nem todos agem assim. Cada cabeça uma sentença, como diz o clichê. Daí que um espirro ou uma ''simples'' gripe em espaço público ou privado, hoje, podem não ser vistos como algo natural, senão como indícios de infecção por covid-19. Na fila do supermercado, ontem, vi um espirro diminuir o tempo de espera em 100%. Eu era um dos últimos da fila e, num instante, chegou minha vez. Associei essa fluidez repentina ao corona vírus — e até lhe agradeci a gentileza. Penso que se houvesse, até o momento, algum caso registrado de palmarino com o Covid-19, nem eu teria sobrado na fila.

Apesar de saber, por intuição e pela própria estatística, que o Covid-19 mata menos que a fome, que os acidentes automobilísticos, que as brigas conjugais, teria sido um dos dissidentes da fila. É como dizem, melhor prevenir que remediar. Naturalmente que esse não é um conselho de um empresário do ramo fármaco, segundo o qual melhor remediar que prevenir. Daí que, no caso de um suspeito resfriado coronesco, esse especialista não especializado em medicina, mas sim em câmbio, recomendaria ao paciente/cliente a compra e ingestão de doses diárias de vitamina D, como meio de prevenção, pois, segundo o Mercado, produzir uma vacina contra o Covid-19 é caro.

Essa, porém, não é a questão que me preocupa. O que me preocupa é outra questão. É como prevenir do Covid-19 a maioria dos terrestres, dos que não têm dinheiro para comprar vitamina D e similares? Dizem os noticiários e seus especialistas que é recomendável tomar banhos de sol regularmente, evitar aglomerações, lavar as mãos um montão de vezes ao dia e à noite também, etc. Mesmo assim, não garantem que estejamos livres do Covid-19. Natural. O problema seria se dissessem que essas atitudes preventivas seriam suficientes para conter o Covid-19. Porque logo, logo essa mudança na ordem natural das coisas faria com que um vírus mais letal e capitalista surgisse. O temido "Covid-20", ainda desconhecido da Ciência e muito conhecido dos frequentadores de padarias e supermercados onde o preço da vida é sempre um absurdo de viver.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 14/03/2020
Reeditado em 15/03/2020
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