Névoa, memória e história*
Não sei que gatilhos mentais são disparados pela neblina sobre o pasto. Tampouco sei se é isto mesmo ou apenas o cérebro tratando de reciclar paisagens e sensações distantes no tempo e no espaço.
Ao contemplar a névoa leitosa sobre a superfície de um enorme pasto pensei em um navio de cruzeiro que tive o privilégio de visitar há alguns fins de semana.
Assim que entrei na área de acesso ao navio, senti aquele cheiro que só existe lá e me lembrei de tempos em que entrei tanto em navio que enjoava. Disse a minha esposa que carregava meu filho no colo, “tava morrendo de saudade desse cheiro, cheiro de navio”. Completei a colocação enquanto o olhar viajava entre as colunas de aço que sustentam aquela enorme estrutura, “todo navio que eu fui na vida tem este mesmo cheiro”.
Após isto, entramos no que eles chamam de “hotel”, que é composto por toda a área de passageiros do navio, esta esplendidamente decorada. Sofás, carpetes e espelhos que em nada se assemelhavam às minhas experiências anteriores.
Quando eu entrava em navios com meu pai, acompanhando-o nos fins de semana em que trabalhava, era um prazer para mim e um orgulho para ele. Um filho que seguia seus passos naquele trabalho tão fundamental, mas muito discreto que era o de agente marítimo. Meu pai falava com os comandantes e outros oficiais do navio, cumprimentava um ou outro tripulante de uma categoria mais baixa que já o conhecia de outras viagens e me apresentava, “this is my son, Jefferson”, no que eu respondia imediatamente “nice to meet you, sir”. E aí eu sentava ao lado do meu pai na cabine do oficial com quem ele estava conversando e esperava que me oferecessem algo (porque eles sempre ofereciam algo). “Do you want a soda?”, “Yes, please, thank you”. E eu tomava o meu refrigerante quietinho, escutando as conversas que eu tentava traduzir, mas praticamente não entendia por causa dos termos técnicos.
Às vezes subíamos pelo elevador até outros níveis do navio. Lembro-me de uma vez que meu pai me levou à cozinha onde era feita a comida dos oficiais e tenho certeza de que nunca mais senti o cheiro daquela comida novamente. Cumprimentamos o cozinheiro, um filipino simpático demais que chamava meu pai pelo nome, “Ah, Sergio!”, no que meu pai respondia afavelmente, “Good morning, this is my son Jefferson”, “Ah, he’s just like you!” e então eles emendavam alguma conversa sobre as viagens e os acontecimentos lá em Paranaguá, cidade onde nasci e vivi até o fim adolescência. Os navios iam e voltavam quase sempre e de meses em meses um mesmo navio atracava no porto e, se a tripulação não tivesse sido substituída, as pessoas eram praticamente as mesmas.
Após os protocolos da visita no navio de cruzeiro, fomos almoçar em um dos restaurantes. Sentamo-nos próximos a uma enorme janela redonda de onde podíamos ver outros navios atracados. Assim que sentamos um garçom veio nos atender. Visivelmente tenso por ter que atender as mesas dos convidados do navio (eu, minha esposa e meu filho entre eles), ele ia e voltava com cardápios e pedidos até que trouxe uma cadeira de alimentação para o meu filho. Argumentei com ele que o cinto de segurança da cadeira estava estragado e prontamente outra cadeira foi providenciada. Volta e meia um oficial do navio vestido dos pés a cabeça de branco passava por nós e parava para falar conosco e fazer uma brincadeirinha com meu filho, que sempre respondia muito simpático e eu fazia questão de dizer, “this is my son, João Arthur”.
Em um certo momento, perguntei ao garçom, “you are from Philipines, right?” e ele respondeu afirmativamente. Disse a ele que é normal que as tripulações de navios sejam filipinas e ele disse que sim, mas que naquele navio a maioria era da Indonésia. Neste momento eu dei um sorriso e pensei em meu pai e em como eu convivi com pessoas daquele país na infância. Perguntei também sobre a expectativa do fim da temporada de cruzeiros e a volta para casa e ele parecia bastante aliviado com isto, mas que estava um pouco apreensivo em ter que ir para Itália para pegar o avião de volta para as Filipinas por conta do Corona Vírus.
Um outro tripulante, uma moça muito jovem que me parecia espanhola pelo sotaque, perguntou sobre o João, que estava em meu colo. Em um ponto da conversa disse que havia quase 30 anos que não entrava em um navio e que meu pai era quem me levava e que, naquele momento, a história mais ou menos se repetia.
Ao fim da visita, disse ao garçom, Edmund, “have a nice trip back home” e ele agradeceu bastante. A seguir descemos e eu senti aquele cheiro de navio pela última vez, desta vez.
Tiramos fotos em frente ao navio e olhei para aquilo tudo como parte da minha própria história. Estar entre pessoas de outros países, tentando conversar com eles e entender como é aquela vida em movimento, primeiro como filho e agora como pai.
De repente deu uma saudade enorme daqueles domingos de sol em que eu saía com meu pai depois da corrida de Fórmula 1 e voltava só na hora do almoço contando para minha mãe que eu havia “conversado” em inglês com o comandante, mesmo que esta conversa fosse apenas uma ou duas frases.
Como a névoa que se dissipa, caso eu não escrevesse, talvez tudo isso se apagasse da minha memória também. Talvez o gatilho mental tenha sido este, para que eu não me esquecesse destas sensações, destes momentos em que pontos distantes da história se juntam e correm lado a lado por algumas horas, afastando-se novamente em direção à memória e à rotina.
Jefferson Farias
*Publicado originalmente em https://ocronistainutil.wordpress.com/2020/03/10/nevoa-memoria-e-historia/