O Limite da Minha Paciência
Um dia desses eu fui numa dessas lojinhas de eletrônicos, e eu não sei o que há comigo, pois eu amo essas lojas, cheias de bugigangas das quais nem sei pra que serve, suas cores e as variedades sempre me enchem os olhos. Só que dessa vez eu havia entrado com uma missão: achar o carregador mais barato e os fones mais simples possíveis, e de preferência sem aquelas bolachinhas irritantes. Era isso, só isso. E qualquer coisa além disso seria luxo e consumismo desenfreado gerado pelo capitalismo objetificante das grandes indústrias, todo esse papo de intelectualóide de merda, sabe?
A loja era confortável, pequena, limpa, arejada e tinha bugigangas para tudo quanto é coisa, porém nada havia me chamado tanto a atenção quanto a sua atendente. Normalmente é uma senhorinha que fica por ali, mas naquele dia, exatamente naquele dia, não. Em situações normais, eu deveria ter notado seus lábios bonitos e delineados, ou seu biótipo, que é sem tirar nem pôr o biótipo que me desperta interesse, também tinha a sua pele bem hidratada e reluzente, tudo aquilo era com certeza mais atraente que as bugigangas eletrônicas, entretanto, eu permaneci alheio a todos os sinais. Onde ficam os fones, perguntei, embora já houvesse avistado-os, ficam bem ali, apontou pra prateleira logo atrás, congratulation, arranquei uma frase dela, pequena, mas ainda assim uma frase. Esse carregador aqui tem um fio curto?, o fio desse é longo, ela disse, e eu já sabia, mas queria puxar papo. Lembro ter ficado um bom tempo tentando escolher os fones, uma tentativa legítima, pois não queria comprar outros, semanas depois. Se você fosse eu, compraria os mais caros ou o mais barato?, na teoria os caros são melhores, respondeu, mas todos eles quebram, expliquei, e ela apenas sorriu — congratulation! Minha chatice estava incontrolável aquele dia, então continuei a conversa com: se eu der vinte neste e ele quebrar rápido, voltarei pra dar dez no mais barato, se eu der dez hoje e ele quebrar, voltarei pra dar dez novamente, no geral eu vou gastar com dois o que gastaria com um. Após alguns segundos em silêncio, imaginei ter deixado ela sem jeito com minha personalidade rabugenta e inutilmente questionadora, digo inutilmente porque eu levaria os fones, independente de qual, esta decisão já tinha sido tomada ao entrar na loja, o resto seria apenas "Mise en scène". Mas, para a minha surpresa, ela disse: se você acredita que todos vão quebrar em poucos dias, então leva o mais caro, eles vão durar mais tempo e você vai ter mais qualidade na hora de ouvir, talvez os mais baratos não te dê tempo nem qualidade. É, meus amigos, além da belíssima boca, belíssima pele e o belíssimo biótipo, ela também era bem esperta. Eu finalmente peguei os fones de vinte, um carregador de dez, que era o mais barato, e paguei. No fim, a velha e clássica frase "deseja mais alguma coisa?" (...) em situações normais, também não a diria, porém pensaria na resposta mais vulgar, sacana e pervertida do mundo. Disse que não, dei bom dia e fui embora.
Foi ao chegar em casa que percebi o quanto ela estava certa, os fones eram fantásticos. O áudio era bom. Era mais limpo. Os fios passavam segurança. A cor e o design eram legais. Estava tudo na mais pura perfeição. Se não fosse por um terrível acidente. Exatas vinte e quatro horas depois, eu, com toda a ingenuidade que me resta, deixei o celular e os fones no sofá da sala. Um ato comum, se você riscar da equação a existência de dois sobrinhos pequenos, brigando pelo fone, um de um lado e outro de outro. É. Desta vez não posso usar a minha teoria conspiratória sobre fones serem feitos para não durar e aí o otário pagar por outros depois, pois estes sofreram de causas "naturais".
Sabe, eu deveria ter ficado com raiva. Eu deveria ter ficado com muita raiva. Deveria ter tido raiva e ter soltado os cachorros pra cima daquelas crianças. Sempre achei que a raiva fosse o sentimento mais motivador que um ser humano pudesse sentir, não o mais nobre, ou mais sábio, mas com toda certeza o mais motivador. Porém, eu não senti raiva, e pra ser sincero eu não senti foi nada, e sendo ainda mais sincero eu já não venho sentindo nada há muito mais tempo do que sou capaz de lembrar. Em situações normais, eu teria voltado lá só para flertar com a atendente. Em situações normais, eu ficaria hipnotizado com alguma bugiganga idiota de sua loja. Em condições normais, eu teria sentido raiva ao ver os fones quebrados. Em condições normais, eu seria uma pessoa normal e sentiria coisas normais, sejam boas, ruins, mas alguma coisa eu deveria sentir. Entretanto, nas condições em que eu estou, todas estas coisas são pequeninos sinais, sinais que dizem que eu ainda estou vivo e o mundo não vai parar. E quanto mais estes sinais aparecem, quanto mais sou confrontado com o duro fato de ainda estar vivo, mais me aproximo de chegar ao limite da minha paciência — com a vida.