Março

O barulho da chuva fina e a tarde que morre aos poucos me lançam pela janela do tempo.

Como um duplo de mim, assisto àquele menino de calção e chinelo de dedo andando pela casa à procura do que observar, exatamente como meu filho hoje faz.

A tarde chuvosa e uma pequena amostra de inverno dão o argumento à minha Mãe: “Põe blusa, Zé! Tá frio”.

Da sala, vejo a serra de Furnas coberta de branco. Desobediente, passo por fora da casa só pra molhar a mão nas folhas das palmas.

Chego à varanda. Dali vejo as galinhas se recolhendo mais cedo.

Minha irmã lida com o rádio, aprendendo a gravar fita cassete das músicas do momento.

Hoje o Pai para mais cedo. Quem sabe dá pra jogar dama?

Sem que Mãe me veja, entro pela cozinha e vou à janela que dá pra casinha da fornalha. As gotas de chuva fazem furinhos no chão, uma formiga insiste na luta contra a lama.

No barranco, meu caminhãozinho de plástico soterrado. Devia guardá-lo? Amanhã.

Admiro, uma vez mais, a mesa amarela, praticamente nova ainda. Pena que Vô deixou a marca de queimado de cigarro no canto! Ela vai se grudar na minha lembrança da mesa por toda a vida.

Paciência. Também o meu rosto vai ficar marcado com o passar dos anos.

Há uma serenidade no ar.

Como num "close up" de cinema, recorto apenas minha face.

Vejo que meu olhar se perde pela porta da cozinha, atravessa as goiabeiras, o curral, a serra, a vida...

Pareço me ver, como por um portal, décadas depois, a me lembrar deste instante, enquanto o barulho da chuva fina preenche a tarde que cai.

É um instante fugaz de dobra do tempo em que meus dois eus se observam, o tal buraco de minhoca da astronomia que aprenderei na escola.

Mas Mãe fecha a porta. E com ela a lembrança.

Do lado de cá, fecho também a janela.

Sinto frio.

Dos bastidores mais fundos de mim, brota uma voz doce:

“Põe blusa, Zé!”.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 07/03/2020
Reeditado em 18/01/2023
Código do texto: T6882634
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