Hoje eu vi nosso ponto

Hoje, eu estava caminhando para casa e avistei o nosso ponto. Antes, quando o via, eu sentia ódio. Apenas ódio. Eu queria explodir aquele lugar, junto com todas as coisas que remetem a você. Mas, dessa vez, foi diferente.

Lembrei-me de nossas brigas ridículas. Do dia desastroso que brigamos sete vezes. Aquele em que eu passei a aula toda de biologia almejando a hora de chegar na sua casa e limpar, não aguentava mais o professor dizendo sobre as briófitas... não estava num bom dia. Meu cabelo estava sujo, preso em um coque mal feito que fiz quando acordei às cinco da manhã. Minha cara estava totalmente amaçada e vermelha, a rinite estava atacando novamente, então meu nariz estava fungando e meus olhos ardendo.

Recordo exatamente de sair daquela aula dando graças por ter terminado e agradecendo a Deus por ser Terça e não ter aula a tarde. Encontrei-te sentado em um dos puffs do hall, sorrindo e tendo um dia aparentemente bom. Desculpe-me por estragá-lo. "Está bonita." você me disse pegando os meus cadernos que carregava na minha mão. E, você conseguiu o inverso do que planejava com aquele elogio. Eu fiquei muito brava porque estava mentindo, eu não estava bonita, a última coisa que eu estava naquele momento era bonita. Por isso, gritei com você no hall, do colégio, com todos os alunos do terceiro e do cursinho saindo das suas respectivas salas. E, você apenas fez aquela sua cara (que eu odeio), levantou as sobrancelhas e por fim colocou a mão no meu ombro dizendo "Acho que você precisa de uma coca".

No caminho para a sua casa, naquele dia chuvoso, eu só pensava na vassoura e no rodo. Eu só faria aquilo a tarde toda. A redação da semana poderia fazer no dia seguinte e as listas de Matemática estavam todas acumuladas, mais uma para pilha não faria tanta diferença.

Porém, para a minha infelicidade, ao pisar na sua casa não vi nenhuma sujeira no chão como estava acostumada. Aparentemente tudo estava limpo. Os colchões das visitas aleatórias estavam guardados, a cozinha estava sem nenhuma louça, todas guardadas em seus respectivos lugares, o fogão estava perfeito e o chão dela estava brilhante... Você apenas sorria, como se quisesse demonstrar que fez tudo aquilo para me agradar.

E, novamente, quebrando as suas expectativas, eu surtei. Gritei com você, dizendo que estava esperando por aquilo o dia todo, que queria limpar mais do que qualquer coisa. E para nossa surpresa, comecei a chorar. Eu não costumo chorar na frente de pessoas, eu detesto parecer fraca e frágil. Mas eu chorei. E quando percebi que estava chorando, corri, tentando esconder aquilo de algum modo (porém já era tarde demais... você tinha visto as lágrimas descerem pelo meu rosto) e fui direto para a estante do Pedro,que já também não estava mais com nenhum resquício de poeira, sem pensar muito comecei a jogar todos os livros no chão e me sentei para organizá-los em ordem alfabética.

Nunca vi você tão assustado como naquele dia. Sentou do meu lado, com receio de que eu te machucasse com algum daqueles livros e, sem questionar mais nada, você apenas organizou comigo. Discutimos se "A psicanálise dos contos de fadas" ficaria no B ou no C. Depois, quando acabamos de arrumar, você me perguntou qual era o meu problema e eu comecei a gritar de novo dizendo que "eu não era maluca pra ter problema toda semana". Mas, dessa vez, você simplesmente me pegou no colo e me colocou no banheiro, fechando a porta com força. "Você não saí daí até tomar um banho" disse com uma voz em um tom mais grosso e autoritário. Você tinha razão. Eu precisava de um banho. Creio que nunca te disse isso, mas você tinha razão.

Quando saí do banheiro, você estava parado na porta, com um copo de Coca-Cola na mão. Talvez, se perguntando se poderia se redimir com um copo de coca. "Me desculpa, só estou muito preocupado" você disse "Nós dois sabemos que quando quer limpar, quer dizer que está mal...". Em seguida, fez uma longa pausa, acredito que pensando se realmente deveria dizer aquilo, mas você disse "Você não quer limpar as coisas, você quer limpar a sua alma. Eu entendo que precise disso materialmente, mas talvez falar sobre isso te ajude muito mais. Não precisa me dizer, pode ser para qualquer pessoa, apenas diga.". Logo depois, esticou o copo de Coca e me deu. Nunca te disse que esse foi um dos melhores conselhos que alguém já me deu. Tanto que, eu o decorei com todas as letras.

Quando eu vi o nosso ponto hoje mais cedo, eu lembrei também das outras quatro discussões que vieram após esse conselho. Elas não me doeram tanto. Elas pareciam apenas brigas aleatórias que serviram para depois contarmos para nossos amigos. "Já brigamos sete vezes em um único dia.". E sete virou nosso número. Jogamos na mega-sena uma vez na hora do almoço e marcamos todos os setes possíveis. Nem sei se ganhamos alguma coisa com aquele jogo. "Provavelmente não, temos sorte em outra coisa" você dizia quando falava animada que se ganhássemos, viraríamos milionários e compraríamos uma fazenda em Minas Gerais.

"Vou ficar com você nos piores dias, assim como fico nos seus melhores" você me disse naquele dia desastroso, e quando eu vejo nosso ponto hoje, eu penso que você não ficou. Não ficou nos meus dias piores. Nos melhores, talvez. Antes, quando eu pensava nos nossos dias, parecia tudo tão superficial, na minha cabeça você era apenas uma idealização, era uma mentira em formato de indivíduo. Como se tudo o que vivemos antes da decepção final, fosse falso.

Hoje, quando eu olho para o nosso ponto, eu me lembro de você dizendo que se sentia bem quando estava comigo, porque eu ria de tudo que dizia e isso fazia seu ego crescer. Recordo das inúmeras vezes que me dizia que o seu dia seria absolutamente divertido se me tivesse perto. De fato, se não fosse por mim não teria feito nem metade das loucuras que fez na vida. Não teria dormido no sereno, não teria sido expulso do observatório por invadir áreas restritas, não teria matado uma barata cantando "Evidências", não teria visto alguém misturar sorvete, bolo de fubá e canela, não teria cantado no semáforo na frente do colégio para conseguir quatro reais e comprar uma Coca pra mim e principalmente, não teria lido os melhores livros que seres humanos foram capazes de escrever.

Hoje, quando cheguei em casa abri minhas notas e procurei uma anotação antiga. "Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.". Eu li essa frase no livro "A Hora da Estrela" da Clarice Lispector, logo depois de conversamos no lago e quis deixar registrado que eu aceitei o conselho de Macabea e também me rendi. A nota marcava o dia três de março.

Hoje quando eu vi o nosso ponto, eu entendi o que Oscar Wilde quis dizer em "O Retrato de Dorian Gray" e não conseguia aceitar. Você tentou me explicar tantas vezes. Mas, hoje, três de março, entendi que simplesmente, há coisas preciosas por não durarem.

Elena Estrela
Enviado por Elena Estrela em 03/03/2020
Reeditado em 27/03/2020
Código do texto: T6879477
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