O enterro da esquerda

Vladimir Safatle escreveu no jornal El Pais um destes artigos seminais, digo terminais. Matou a esquerda brasileira. Resta saber como serão as exéquias: enterro tradicional ou crematório. Provavelmente a primeira opção. É mais barato. Caixãozinho simples, cemitério público e nada de bolachinhas e café, sem mordomias. Enterro de esquerda é assim. Centro e Direita compareceram ao velório, afinal quem mais sobrou do espectro? E seguiu-se aquela conversa laudatória para entreter a noite que será longa, sabem, aquele tempo de velório devagar, quase parando.
- Coitada – lamentou a Direita, uma mulher idosa, conservada e muito bem vestida. Tristeza protocolar por fora, exultante por dentro – era tão nova.
- É mesmo - concordou o Centro acendendo um charuto – mas descansou, estava sofrendo muito nestes últimos anos, vivia como uma morta viva, encontrou a paz.
- Que Deus a tenha – reforçou a Direita – porque o Brasil não sentirá sua falta. Sem ela nosso capital financeiro alçará mais voo ainda, o agronegócio não terá mais fronteiras e ninguém nos incomodará com meio ambiente, nossa Casa Grande seguirá crescendo...
- Não sejas tão ingrata com a defunta – interrompeu o Centro, sujeito gordacho, bonachão, de fraque – ela não era má. Ficou até nossa amiga, lembras? Solidária com nossos bancos e até com nossa corrupção. E nos livrou de umas boas, sabe o Banestado? Até na reforma da previdência cooperou não radicalizando nadinha. Graças ao bom pai nunca tivemos esquerda no Brasil, temos que ficar preocupados é com os Estados Unidos.
- Estado Unidos? - Gritou a Direita, logo se recompondo ao ambiente.
- Sim, Estados Unidos, nunca confiei muito naqueles americanos, no fundo não passam de uns comunistas. Veja só, agora ameaçam eleger o Bernie Sanders, imagine o que será do Brasil?
A conversa preocupou a Direita, até então aliviada com o cadáver à frente.
- E se ela ressuscitar?
-O que?
- E se ela ressuscitar e voltar mais forte, como uma esquerda verdadeira? Como a esquerda americana. Precisamos ficar de olho no terceiro dia.
O Centro, pensativo, deu uma puxada profunda no charuto e passou a soltar a fumaça em círculos, para cima.
- Ela não é Jesus Cristo.

 
luiz cezare vieira
Enviado por luiz cezare vieira em 02/03/2020
Reeditado em 21/03/2020
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