DE “NOVO AMAPÁ”: QUANDO A EXPRESSÃO SE TORNA AUTOEXPLICAÇÃO

O problema maior não é excesso de demanda, é escassez de compromisso.

Claudinho Chandelli

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De fato, em se tratando de Amapá [a exemplo do Norte do Brasil em geral], a expressão acidente geográfico não é apenas a tipificação de uma variação do relevo terrestre; é uma explicação ou autoexplicação sobre a localização do Estado em relação ao Brasil e, por consequência disso, a explícita negligência das autoridades governamentais em geral e, em especial, as da própria região que, ao menor aceno de atendimento de suas demandas pessoais ou dos grupos político-econômicos que estas representam, em regra, literalmente se vendem, deixando a população a ver navios. Desavergonhada e desgraçadamente, a ver navios afundando e, com estes, além de centenas de pessoas, os sonhos, as esperanças e a paz de outras tantas que, enquanto existirem sobre a terra, continuaram morrendo pela dor de seus entes queridos, muitos dos quais jamais terão, sequer, o mínimo direito de uma última despedida, uma vez que jamais encontrarão e/ou identificarão vários corpos.

Nesse caso, o “acidente” não é acidente, é excludente. Ou o acidente, que era pra ser apenas geográfico (curvas, “bocas”, entradas, leitos, encontros... de rios), torna-se acidente [ou crime] demográfico. No caso, o acidente não é o que acontece, repetidamente e pelas mesmas causas, com as embarcações – isso é a consequência. O verdadeiro “acidente”, nesse caso, é a localização do Estado: é o Amapá, é o Norte. É como diz o poeta: aqui, “ninguém nos leva a sério, só o nosso minério”. Melhor, é a forma como nossos representantes tratam os diferentes Brasis.

Em respeito à paciência do leitor e, sobretudo, à dor dos enlutados, para evidenciar as afirmações supramencionadas, destacarei apenas três fatores que, assim como as tragédias (criminosas e anunciadas), se repetem quando se trata de Amapá: 1) total desinteresse da Imprensa Nacional, 2) tardança de pronunciamento e posicionamento oficiais das autoridades representantes do Estado e, o mais revoltante e mais grave, 3) claro esforço das autoridades e instituições em se eximirem das responsabilidades nos casos, a começar pela negação ou objeção na aquisição de informações oficiais precisas, quer à Imprensa quer aos familiares das vítimas.

Tais autoridades, em regra, são tão cínicas e insensíveis que, mesmo quase quatro décadas depois do naufrágio do Novo Amapá – que matou próximo de 400 pessoas –, há reclamações de resistência (e até boicote) destas para a produção cinematográfica do filme-documentário que contaria a história desse crime simplesmente porque a produção, indiretamente, denunciaria (o que seria inevitável) as negligências do Estado à época.

Normalmente diante de casos como o corrido na madrugada de 29/02/2020 (naufrágio do Navio Ana Karoline III), quando resolvem fazer algum pronunciamento à sociedade, em regra, essas autoridades, vêm com a máxima de excesso de demanda como justificativa para permitirem que esses crimes se repitam permanentemente.

Ora essa, senhores, não venham (como se a nos chamar de tontos) dizer que a demanda dos portos de Santana-AP – e até dos de Belém-PA ou Manaus-AM – é maior do que as de aeroportos como o de Guarulhos-SP ou o Internacional de Brasília, por exemplo!

Digam-nos [a verdade] que a diferença não é a demanda, mas a localização e, acima de tudo, as castas dos usuários.

Ouvir isso certamente nos dói, mas não tanto quanto está doendo, agora, para os que perderam seus parentes, familiares e amigos justamente porque, entre outras negligências e crimes de todos nós, vossas senhorias não têm o mínimo de coragem, decência, dignidade e empatia para ao menos assumirem publicamente suas [I]responsabilidades.

O grande problema é que o Amapá está acima de todos os demais Estados brasileiros – inclusive muito acima de Brasília –, mas só geograficamente.

O que, nesse particular, se repete por aqui, não é acidente; é crime – e não é sé de responsabilidade; é de clara e inequívoca discriminação mesmo!