A echarpe
Final de julho, era sábado à noite e fazia frio. A cidade estava movimentada como de costume. Carros e ônibus nas ruas, buzinaços e grupos de jovens bebendo todas em direção às baladas. Eu estava sentado na lotação, olhava o relógio e contava os minutos para chegar logo em casa. Tinha sido um dia cansativo no trabalho.
Na parada próxima à rua Augusta na Avenida Paulista, uma moça de cabelos não muito longos, negros, com pele clara, trajando um vestido preto e casaco, sobe e se senta ao meu lado.
Tinha em suas mãos uma cadernetinha vermelha, parecia um diário com algumas notas e uma foto. Leu o que havia escrito várias vezes, olhou bem para a imagem e guardou na bolsa. Fora isso, tinha um perfume muito característico: doce e levemente ácido. Sua echarpe vinho com sombreado azul-marinho dava o toque final de seu charme. Trabalho num jornal como redator de obituários e dou aulas de português para estrangeiros numa escola que fica no bairro do Paraíso, de onde venho no momento. O ônibus agora desce a Rua da Consolação e passa ao lado do cemitério.
Olho para o lado e vejo uma lágrima escorrendo do rosto da moça. Ela olha fixo em meus olhos com tristeza e, então, abrindo um sorriso digo: “Não importa o que tenha acontecido, não desista! Levante a cabeça, sorria e siga em frente!”, sorrindo ainda termino: “Mesmo com essas lágrimas e a maquiagem assim, você é linda! Sabia?”.
Ela então retribuiu com um sorriso e disse que eu estava sendo apenas simpático. Falei que não, mas não acreditou. Apesar de tudo, tentou manter a compostura e parou de chorar, depois de se limpar.
Pensei em convidá-la para um café, e assim o fiz. Ela aceitou. Então, na próxima estação descemos e tomamos um espresso numa cafeteria no centro. A bebida quente nos aqueceu e o aroma desprendido pela fumaça atiçou nossos sentidos. Além disso, o momento permitiu que nos conhecêssemos melhor.
Era publicitária e se mudara do interior havia alguns anos. Conversamos sobre literatura, cinema e outras coisas. Seus escritores preferidos eram os russos. Gostava de Woody Allen, mas não deixava de assistir às comédias do Ben Stiller. Uma das coisas que mais gostava era se sentar na varanda, fumar um cigarro, ouvindo jazz e não fazer nada, só olhar a vista.
Então, falei que a conversa estava ótima, que adoraria conversar mais e propús irmos para um lugar mais aconchegante. Ela perguntou onde. Respondi que meu apartamento não era longe, e veja só… Tinha uma varanda com uma vista fantástica!
Ela disse que gostou de mim, mas mal me conhecia… Então, disse que lhe mostraria minha coleção de vinis das divas do jazz. Falei que tinha Billie Holiday, Ella Fitzgerald e muitas outras.
Não resistiu e fomos à pé dali até meu apê. No caminho, paramos numa loja de conveniência 24 horas e compramos um vinho tinto. Chegando, coloquei para tocar um disco, abri a garrafa e servi as taças. Tomamos sentados na varanda, fumando e vendo o mar de pedras. Imaginamos a imensidão de pessoas que havia nessa cidade e pensamos quantos sonhos, quantas desilusões existiriam em cada janela. Conversamos um pouco mais, então nos beijamos e entramos em direção ao sofá.
No dia seguinte, despertei com o sol batendo no meu rosto, uma baita ressaca com gosto de jornal na boca, mas satisfeito com a noite anterior. Contudo, quando vi ela não estava mais em meu apê. Deixou somente sua echarpe em cima da mesa e nada mais. Foi-se para sempre e para sempre ficarei com essa lembrança. Então, apanho a echarpe e sinto seu perfume…
Nicholas Merlone
Sp. 28/08/2010
Publicado originalmente no Portal Literal