O banho

“O melhor seria morrer num baile, com as idéias ainda claras, cair de repente no meio de uma tirana ou duma chimarrita, como uma vela nova de chama brilhante que o minuano apaga com um sopro, e não como um coto que se queima até o fim, numa agonia lenta”.

Érico Veríssimo, "O Tempo e o Vento"

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Ele defecou na cama. Isso dificulta um pouco as coisas, pois há necessidade de se fazer uma limpeza superficial antes de levá-lo ao banho. Fraldas, lençóis, plásticos que recobrem o colchão, tudo deve ser removido, mas ele não colabora. Colocam-se luvas e inicia-se um procedimento difícil e desagradável, que é o da limpeza prévia de sua pele, ato que ele abomina e faz de tudo para dificultar: mesmo com suas limitações físicas ele bate, chuta, grita seu grito gutural e sofrido.

Uma vez parcialmente limpo, é hora de colocá-lo na cadeira de banho, uma cadeira de rodas adaptada para encaixar-se no vaso sanitário e para ser colocada sob a água, já que é feita de material apropriado. Há que sentá-lo na cama e carregá-lo para a cadeira, mas assim que se acomoda é necessário distanciar-se dele, pois ele fecha as mãos e dá socos no ar com força e ódio; e são tão poderosos o ódio e a força que se esse soco alcança uma pessoa pode feri-la, como já aconteceu tantas vezes.

Assim que entra no chuveiro ele se aquieta um pouco, pois gosta do contato da água tépida com a pele, e esfrega a cabeça forte e ininterruptamente, como se nela houvesse uma sujeira de anos. Porém recentemente a técnica do banho sofreu alterações: joga-se sobre ele manualmente a água aquecida com o auxílio de um recipiente, pois ele, nos seus acessos de fúria, arrancava a mangueira do chuveirinho com um puxão. Sua força é inacreditável para um homem de 86 anos, magro e aparentemente frágil, sobrevivente de uma isquemia e que não fala, não se locomove, não controla seus esfíncteres, escapou por pouco da amputação de uma das pernas - foi-se apenas o dedão do pé - e está totalmente dependente do cuidado alheio.

Limpo e enxaguado, coloca-se uma toalha às suas costas e assim ele é levado para a cozinha, onde há mais espaço de manobra. A casa, como tantas outras, não foi pensada para idosos e muito menos cadeirantes: o banheiro é pequeno, as portas são estreitas, os pisos escorregadios e há alguns pequenos degraus a vencer. Por sorte esta casa, um sobrado, possui uma dependência de empregada com um banheiro acoplado, e a passagem para a cozinha, fechada com portas de vidro, criou uma peça apropriada para o doente toda no nível térreo. Caso contrário, as escadas do sobrado inviabilizariam sua vida lá.

Na cozinha é finalizado o ritual: vestir, colocar meias, eventualmente fazer um curativo, pois em seus acessos às vezes bate os braços e se fere, sangrando com facilidade. Sua pele tem a textura e a fragilidade de um papel de seda amarrotado, e seus braços antes fortes e rijos hoje mostram inúmeras manchas negras, antigos hematomas que vão se somando a outros e escurecendo sua pele que um dia foi muito alva. Suas pernas, extremamente finas e rígidas por conta do desuso, são quase uma barreira ao vestir, e muitas vezes ele pega as roupas que alguém tenta colocar-lhe e as atira longe. Arroxeado e tremendo de frio, agarra-se ao assento da cadeira com dedos de ferro, e não permite que ninguém o toque. Cobrir-lhe o corpo com o pijama que invariavelmente usa às vezes pode levar muito tempo e custar hematomas também a quem se arrisca.

Finalmente, exausto do embate, lá está ele, limpo, perfumado e penteado, sentado na sala em sua poltrona reclinável com os braços pendidos para o lado, a boca semi-aberta deixando escorrer um fio de baba transparente que cai sobre seu colo, a cabeça levemente inclinada. Sua aparência calma e apática não demonstra, de forma nenhuma, o combate que foi travado momentos antes. Ofereço-lhe a televisão, debilmente faz que não com a cabeça; ofereço-lhe minha mão, que ele olha de soslaio e ignora sem nenhum gesto. Vagarosamente abraço-o, beijo-o na testa, e ele chora; mas logo recusa meu carinho e suavemente me afasta com as mãos. Ele agora não quer nada, nem carinho, nem apoio, nem a presença de alguém. Ele, me parece, não quer nem viver, mas nós fingimos que não entendemos, nós e nosso amor egoísta e possessivo, nosso carinho sufocante e imposto sem seu consentimento ou vontade.

Diferentemente das outras vezes, desta vez também choro. Um choro como que represado, um choro de comoção ao lembrar de meu pai forte e inteligente, criativo e sempre disposto, gabando-se de sua saúde de ferro; choro por vê-lo assim, acabando-se aos poucos, humilhado e dependente, sem poder se fazer entender e sem nem ao menos conseguir expressar o que sente – nem que fosse, como às vezes gostava de fazer, soltando um sonoro e retumbante palavrão.

Enxugo as lágrimas escondida de minha mãe, que pelo fato de participar, direta ou indiretamente, deste ritual cotidiano, tem os olhos verdes quase sempre secos, mas a alma em frangalhos e uma tristeza funda entre as rugas de seu outrora lindo rosto; não posso aumentar-lhe o desgosto mostrando-me assim fragilizada. Porém, egoisticamente, só penso em sair dali o mais rápido possível, tomar um longo e perfumado banho quente, e tirar de minha pele qualquer resquício de fezes e urina, bem como daquela velhice decrépita, humilhante e insana que temo infinitamente mais que a morte.