Bar Pacífico
Certo dia, viajando para a cidade natal de minha companheira, me deparei com uma cena inusitada que se passou por alguns segundos: um homem tropeçava no meio fio e seria atropelado pelo ônibus em que eu estava, se não fosse um outro homem, de mesmo tamanho e em igual estado de “bebura”, que o puxou para lhe enfiar um murro. Honestamente, não tenho certeza se o agressor salvou aquele homem. Outros socos, isso, sim, eles trocaram na minha frente, logo que o homem se desviou do ônibus. Talvez, minha memória, por associação ao que vivi, teima em fabricar uma lembrança em que esse homem, que quase foi atropelado pelo ônibus, foi puxado pelo outro homem, de volta à calçada, para que a briga se desse homem a homem, sem apelação. Sei que posso ser mal jugado por romantizar uma situação de violência. Perdoem-me. Mas era uma briga “bonita”, se levada em conta o estado de barbárie em que vivemos atualmente. Falo bonita porque não existia favorito. Os dois homens eram do mesmo tamanho, estavam sob efeito do mesmo álcool e utilizavam somente os seus corpos. Era uma briga ancestral, de seres de mesma espécie querendo, na igualdade de condições, resolver suas diferenças inerentes, digamos assim.
A cena me fez lembrar de um bar que existiu em um dos bairros em que morei. Era o bar do Seu Pacífico, como chamávamos lá. Os que eram de fora, o conheciam mesmo por sua placa: Bar e Mercearia Pacífico. Este ficava em uma espécie de galeria ou pequeno centro comercial, que tinha seu tamanho definido por duas ruas paralelas. Assim, o bar foi construído entre dois becos, abertos para funcionar como interseção entre as duas ruas, de modo que, quem quisesse paz para suas pernas, cortava caminho passando pelo bar. Na linguagem de hoje, era como se o estabelecimento ficasse no meio do símbolo chamado de cerquilha (#).
Trocando em miúdos, as poucas cadeiras e mesas que existiam ficavam na calçada da rua, fazendo com o que a maior parte dos clientes bebessem em pé no balcão, naquela espécie de quiosque entre dois becos. O Bar Pacífico era no formato de “lanchonete de balcão”. Era, portanto, toda fechada à entrada de pessoas. Mas, considerávamos um bar, porque, sem pasteis de qualidade para vender, vendia somente cigarro, cerveja, tira-gosto, Paratudo e toda sorte de raízes.
Lá, parava uma freguesia diversificada. Era frequentado por flamenguistas e vascaínos, tricolores e botafoguenses, brizolistas e “filhotes da ditadura”, fernandistas e lulistas, pefelistas e pemedebistas, liberais e estatistas, programáticos e pragmáticos, conservadores e progressistas; pelos ferroviários dos mais altos graus da Companhia Vale do Rio Doce; pelos operários e diretores da Companhia Siderúrgica Tubarão; pelos comerciantes e pelos comerciários; por caixas e gerentes de bancos; por empresários e peões; por funcionários públicos de carreira e por comissionados; por juiz e por delegado; por alguns policiais e por pequenos golpistas e meliantes; e também pelos desempregados - convictos ou por conjuntura adversa.
No balcão do seu Pacífico se falava de tudo. Nenhum assunto era interditado. Quem era empregado, reclamava da precarização do trabalho e cochichava que a culpa das usuras e desmandos passava pelos gerentes e diretores. Quem “vestia a camisa da empresa”, falava à boca miúda que o país estava à míngua por causa da seguridade social, sustentadora de vagabundo em bar. Quem era flamenguista, gabava-se que agora teria o melhor ataque do mundo: Sávio, Romário e Edmundo!
As discussões iam subindo de tom e ficando mais animosas na proporção que o dinheiro ia entrando no caixa do Pacífico. No auge da temperatura do estabelecimento, não era incomum um conflitante deixar os cochichos para palestrar em voz alta, iniciando-se discussões ríspidas. Lembro também de presenciar ou de receber a notícia de diversas brigas que chegavam as vias de fato.
Somente para ilustrar um caso paradigmático daquele bar, certa vez, o dono de uma incipiente construtora, que pegava pequenas empreitadas, estava em pé no balcão e insinuou que perdera o contrato com uma ex-estatal da mineração porque seu funcionário, que também estava no recinto, havia se jogado do segundo andar de um prédio em construção, quebrando as duas pernas, somente para ficar encostado na esbórnia. O empregado, sentado na calçada, tomou uma dose de sua cachaça, bateu com o copo na mesa e denunciou em alto e bom som que o empresário havia dado baixa na empresa sem pagar seus funcionários, para constituir uma outra, desta vez com nome estrangeiro e através de laranja, com objetivo de pegar novo contrato com a recém privatizada da mineração. Diante de acusações mútuas e sem encontrar o fim da lide pelas vias pacíficas da linguagem pátria do bar, os dois chegaram as vias de fato.
Nesse período, as brigas começavam a ficar feias e desequilibradas. O trabalhador, já com as duas pernas quebradas, tomou uma surra do ex-construtor. Este, com receio de ter fama de mau administrador por ter perdido um bom contrato no ramo que já pensava dominar, não desmentiu, portanto de propósito, a história de seu ex-subordinado. Pensou, naquela conjuntura, melhor ter a fama de covarde que de falido e enganado.
Seu Pacífico se mantinha neutro em todos os conflitos. Sabia que o risco dos problemas atravessarem seu balcão e afetar a estrutura e mercadorias do seu bar era mínimo, para não dizer zero. Brincava que sua posição não era esquerda, direita e nem centro, pró-patrão ou trabalhador, flamenguista, tricolor, vascaíno ou botafoguense, mas no balcão, entre as duas ruas, de modo a lucrar com os conflitos alheios. Seu Pacífico, não sei se ironicamente ou de forma inconsciente, propagandeava que o seu bar era o único do bairro em que nunca houve nenhuma briga nas suas dependências. Olhando para aquela época de ajustes fiscais e espoliação nacional, dou-lhe razão: as dependências do bar do Seu Pacífico era o único lugar onde podia-se dizer que reinava a paz social.