DIVAGANDO NA TARDE CINZENTA

Tarde cinzenta, um céu grávido de chuva, terça feira de carnaval.
A minha cara metade dorme o sono das justas e eu - que não consigo dormir de dia – aqui diante do monitor.
“Morena”, nossa gatinha de estimação, a me fazer uma silenciosa companhia.
No mais, uma quase melancolia, não fosse a euforia que extravasa de quando em quando na cancha sintética de futebol a pouca distância de onde me encontro.
Vêm-me à lembrança:
O ciclo das águas cumprindo-se em distante fevereiro de minha existência numa tarde sufocada a um abraço cinzento de céu.Discreto lamento de chuva sussurrava um choro pelo telhado e da janela do sótão eu espiava os pingos encharcando gerânios ao redor da casa.
O quintal mergulhado em poças d´agua e pelo gramado, quero queros exibicionistas em passadas esguias.
Na cozinha de chão batido, troncos de lenha abrasavam trempe e tacho onde as peras de minha infância fundiam-se lentamente num encorpado doce.
Um odor adoçicado de brotas de figueira- usadas como aromatizante – desprendia-se daquela massa cor de âmbar, incensava o velho casarão de madeira e subindo pela escada do sótão, varava fendas entreabertas entre o telhado e vigamento, por onde poeira e fumaça, de muito já haviam gravado suas histórias.
Ao redor do tacho, de lenço e avental brancos, uma silhueta franzina, calada, repetia movimentos giratórios da pá, em busca do ponto exato ao doce.
Seu nome ? Maria !
Vó Maria, a “Nhá Teixeira” como era conhecida.
Inebriado àquela doçura, no sótão eu vagava no espaço entre uma janela e outra por onde corria um assoalho de tábuas largas.
Numa das janelas,proxima à escada, podia-se com pouco esforço alcançar as peras que pendiam pesadas na fragilidade dos galhos, espiar o entra e sai das abelhas “mirins” – presente de seu Manequinho, nosso vizinho, que as aprisionara numa pequena caixa d e madeira (antiga embalagem do Mate Leão).
Na outra janela, eu avistava o meu pequeno mundo cerzindo a estrada que levava à escola, a colonia dos lavradores,o trecho compreendido entre as moradias dos imigrantes árabes com suas janelas sempre abertas , rádios ligados em volumes altos e chaminés lançando perenes tufos d e fumaça.
Ao meio do caminho, no sótão, pelos encaixes das telhas haviam sempre, muito bem camufladas , algumas cartinhas de amores de infância e revistinhas não muito apropriadas e “pouco recomendáveis”, digamos assim.
Lá fora a tarde entregava os pontos à chuva que não passava, o riacho transbordava massacrando a sensibilidade das avencas que habitavam por debaixo da ponte.
Não demorava , uma voz forte e vibrante proferia um conhecido bordão:
-“Café tá na mesa ! Desça já daí, piá de bosta! Não sei o que tanto faz nesse sótão !”
“Boa coisa é que não deve ser “ - acrescentava a outra voz.
Feito um gato eu pisava os mais de 15 degraus da escada.
Já na cozinha... Pão caseiro, doce de pera & figo, esperavam-me serenamente sobre a mesa .Ao seu redor a canequinha verde - de ágata - transbordando em café,leite e nata.
Eu me empanturrava. ! Vovó e mamãe falavam de seus cotidianos enquanto, calado e de boca cheia , eu divagava nas cartas e revistinhas camufladas sob os encaixes do telhado.
Lá fora, a chuva persistia molhando gerânios e escarolas no quintal.