Por entre os pingos da chuva


 
Indiferente ao aroma, ao perfume da manhã, o inverno chegou. O inverno? Alguns corrigirão: A estação oficial é o verão. Para nós, no entanto, é o nosso inverno. A estação das águas, das chuvas torrenciais que parecem acontecer somente em São Luís, entre noites que têm sapos, grilos, cigarras, tagarelando na escuridão dos charcos, dos mangues, dos terrenos baldios; que têm muriçocas renitentes; que têm manhãs luminosas de sol radiante e dias mormacentos, que vão cingindo a gente, até o entardecer.
Um novo inverno não acontece da mesma maneira que o inverno que o precedeu. Cada inverno, como cada dia, como cada manhã, como cada pessoa, é essencialmente único em si mesmo. Mas, como numa tela pictórica, contém os mesmos elementos em sua composição: conteúdo, forma, ritmo, massa, volume, textura, movimento, harmonia, luz, sombra, perspectivas, cores. Enfim, elementos componentes, com funções estruturais e estéticas, sob a ordem inelutável do supremo Criador.
O que torna um novo inverno diferente do outro que o precedeu, ou o antecedeu, se quisermos retroceder de forma mais remota no tempo, não é necessariamente a profusão das águas que ele tráz consigo, nem mesmo o cenário natural onde essas águas acontecem, com o inverno que lhes pertine.
Do mesmo modo, não é também o ritmo com que essas águas se precipitam sobre os telhados e a Baía de São Marcos, depois de escorrerem pelas ladeiras da cidade. Não é isso, como também não é o cromatismo das nuvens e a umidade do ar que põe cheiro de mofo nas roupas, nos lençóis, nos travesseiros, em tudo mais que resta guardado nos aposentos.
O que torna um novo inverno diferente de outro inverno é o testemunho, o sentimento, a percepção das pessoas que o estão vivenciando, que o estão sentindo, interpretando e, com suas atitudes, dando-lhe existência sentimental e formalmente objetiva. Tudo, considerando a metáfora da tela pictórica, como se essas pessoas estivessem escolhendo os elementos disponíveis de uma composição para, com eles, formularem outras composições, marcadamente suas, com os traços definidores de sua forma de ver, de sentir e de interpretar o mundo circundante.
Assim como todas as coisas, factuais ou materiais, só adquirem existência efetiva, para nós, na medida em que se tornam perceptíveis a nosso intelecto e a nosso interesse. Assim como essas coisas precisam de nosso juízo crítico para integrar nossa escala de valores. O inverno, como não poderia deixar de ser, também integra essa escala de valores, na ordem de nossas lembranças, como todo o acervo daquilo que convencionamos chamar passado. Como um novo inverno não acontece igual a outro que o precedeu, uma lembrança também não acontece igual à outra, ainda que o mesmo motivo as tenha suscitado.
Os invernos referenciais de minha infância, por exemplo, nunca mais se repetiram, na ordem das coisas naturais. Aqueles invernos tinham chuvas torrenciais que, às vezes, duravam quatro a cinco dias seguidos, de forma quase ininterrupta. É claro que havia, em torno disso, um conjunto de ritos familiares que nos ajudavam a conviver com aquele período. Saberes que a tradição foi conservando e transferindo, e que integram o acervo de nossas referências de vida.
Os invernos dos últimos anos não foram muito pródigos em águas. Mas foram invernos. Ansiados como invernos. Sentidos e vividos como invernos e, como invernos, partiram, deixando lembranças do que deixaram de ser e do que, de fato, o foram. Para alguns, foram invernos de fartura; de semear e colher; de encher rios, lagos, fontes, de deixar recordações gravadas no tempo.
Para outros, não terá sido tanto assim. Há os que reclamam das enchentes, das inundações, dos barracos que ruíram, dos pertences que perderam e da destruição que viram em torno de si.
Será sempre assim, com todas as coisas passíveis de nossa interpretação, do subjetivismo humano. Cada um definirá, sentirá, conforme a educação que recebeu, os valores que lhes foram transmitidos e ensinados, as circunstâncias que o motivaram, sua experiência de vida e as utopias que alimenta.
Mas, independente do juízo que fazemos dos fatos, das coisas, eles acontecem e acontecerão sem considerar nosso julgamento, a ideia que deles fazemos. A ideia que fazemos das coisas nos faz pessoas, nos faz particularizar nossa existência, definir os rumos que trilhamos, nos unir e nos afastar das pessoas que escolhemos, na ânsia de seguir nosso destino e construir os abrigos de nossa felicidade. Assim como os rios descem das serras e vão serpenteando, vencendo distâncias, desaguar no mar. Assim vamos todos, na metáfora da vida, desaguar no mar.
Um novo inverno, no entanto, só por ser inverno, será sempre festejado, sempre ansiado por trazer as chuvas, por trazer as águas que vão irrigar e percolar a terra, que vão alimentar as raízes, que vão fazer brotar os frutos, que vão saciar a sede, sendo o símbolo mais translúcido da fertilidade. Água como fonte de vida. Vida como dádiva de Deus e trajetória do homem. Deus como fonte permanente e inesgotável de inspiração e vida.
Ivan Sarney
Enviado por Ivan Sarney em 22/02/2020
Reeditado em 22/02/2020
Código do texto: T6871807
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