Carnaval, o milagroso
Hoje, por ocasião da data, me veio à lembrança meu primeiro Carnaval. Uma experiência que me moldou a opinião sobre como nossa percepção de verdade e fantasia, pecado e salvação podem permutar, a depender de nosso estado de espírito ou de como as coisas a nosso redor estão postas. Hoje vejo o Carnaval mais pelo lado do feriado que da festa em si, e penso que essa visão tem a ver com a casa dos trinta anos a que cheguei; porém, ressalte-se, não há provas científicas de que envelhecer esteja proporcionalmente relacionado ao abandono da folia e dos efêmeros prazeres da vida. Parece-me haver justamente o oposto: à medida que envelhecemos, mais necessitamos de folia e ilusão para suportar as exigências da vida — e isso, também, carece de provas científicas.
O dia da semana não lembro bem, mas suponho que tenha sido num domingo, dia meio careta e que tanto me suplica afazeres domésticos. Eu tinha uns dez anos, mas aparentava menos, conforme a opinião de familiares; estava sobre um alpendre, sem nada fazer, olhando o vento passar voando por cima de um varal repleto de poucas roupas para secar. Um dia antes, um cachorro, que o tinha como de estimação, havia morrido supostamente comido por uma raposa, mas que mais tarde descobri que a causa mortis tinha sido envenenamento. Essa descoberta, porém, não me diminui o pesar, pelo contrário, se pudesse opinar, preferiria que tivesse morrido comido por raposa a morto por envenenamento: afinal, em alguns casos, sempre me causa horror intervenção humana para encurtar a vida, já em si por demais breve. O dia aproximava-se à tarde, o sol caminhava lentamente para a cama, as poucas galinhas que habitavam o terreiro marchavam para uma carroça, espécie de galinheiro, quando me veio um banho de farinha, que depois descobri ser Maizena, com recheio de ovo.
Um casal de pivetes em algazarra se apresentou e assumiu o delito, alegando ser Carnaval e que tudo era brincadeira. No princípio, pensei em revidar e por meio de ação mais concreta e castigadora. Bem próximo a mim havia um balde cheio de lavagem para porco, ao lado direito tijolos usados e, à esquerda, uma jaca podre. Todo esse material poderia ser utilizado em minha defesa, mas recuei. Desisti de revidar o atentado sofrido, levantei-me do alpendre, passei a mão sobre o cabelo, chacoalhei-o um bocado e um punhado de Maizena veio ao chão, o que sobrou estava grudado ao visco do ovo. Fiz breve silêncio, os pivetes me olharam assustados, achando-se em iminente perigo; mas afinal, vencido, eu me recolhi a um riso insosso e desajeitado, e até participei da festa, ao que foi ao agrado de todos.
Esqueci-me momentaneamente do envenenamento do cachorro de estimação, dos afazeres domésticos, do domingo, de seus bocejos, de tirar a pouca roupa do varal e cai na inocente folia. Uma pena aquela noite ter sido de chuva e encharcado toda a roupa suja do varal. Mas nada disso impediu o Carnaval de continuar, em toda sua folia e repetição, aguardando o apito final da quarta-feira de cinzas, com as penitências regulares. Nada disso o impediu de ser assim meio milagroso. Uma pena um milagre desses durar tão poucos dias.