Papo de Uber*

Deixei o carro na oficina e entrei no Uber.

Abel, o motorista, rapaz novo, baiano, na casa dos 20 e poucos anos, há 3 meses nesta vida de motorista de aplicativo.

Tinha carteira assinada. É mecânico de carros.

Mas o patrão não pagava bem e o ambiente de trabalho era de muita pressão e pouco diálogo. Como muitos pequenos empresários, pagava “por fora” uma parte do salário, praticamente metade.

Pediu a conta com pouco mais de um ano de oficina e foi se aventurar num Siena branco movido a GNV. O kit de gás custou R$ 3000,00 e ele estima que consiga paga-lo em cerca de três meses de trabalho.

Abel não ganha se não trabalhar. Começa cedo e termina tarde quase todo dia. Em um dia bom, ganha R$ 250,00 , mas precisa de R$ 80,00 de gás para um dia inteiro no trânsito.

O jovem motorista gostaria de voltar a trabalhar com carteira assinada, ter férias, direitos trabalhistas (os que restaram) e alguma segurança mas disse que não pode reclamar das escolhas que fez. Trabalha bastante e ganha bem para os seus padrões. Tem esposa, mas não sei se tem filhos.

Abel parece ser a cara deste novo Brasil que vive o momento por não conseguir imaginar o que será do futuro. Queria uma vida diferente, mas não consegue sair desta situação para conquistar o que julga ideal.

Talvez perceba dia a dia, que a luta é o que lhe resta e se conforme em adiar sonhos para outros tempos com céus menos carrancudos.

Deixou-me no meu destino, agradeceu muito o papo e se desculpou por falar demais, mesmo que eu tenha lhe feito todas estas perguntas cujas respostas estão relatadas acima.

Eu que agradeci pela boa viagem. Desejei-lhe tudo de bom e que as coisas se encaminhem para ele da melhor forma possível.

Adentrei na segurança do meu emprego concursado, com carteira assinada, férias, décimo terceiro, horário determinado e plano de saúde e Abel foi ao encontro de outra viagem, de acordo com ele, a segunda deste dia, já que a minha fora a primeira.

Talvez nunca mais o veja, mas sei que ele existe e como ele existem outros milhões se equilibrando na corda bamba que é este trabalho.

Que Abel realize seu sonho mais próximo hoje: chegar em casa.

Jefferson Farias

*Publicado originalmente em https://ocronistainutil.wordpress.com/2020/02/19/papo-de-uber/