Quando a ambulância passa...

 

 

                         Quando a ambulância passa pela minha antiga rua com sua sirene estridente, o meu coração diminui de tal jeito que eu sinto ele murchando. De cada vez eu penso, desta vez ele se acaba, mas não, ele volta a crescer e continua o seu compasso. E de cada vez uma nova lembrança é recuperada para que eu componha com os cacos de minha memória a história de minha vida. Principalmente quando novembro se aproxima, o doce e triste novembro, que me lembra a morte de meu pai. Fomos juntos, eu e ele, naquele dia, há anos tantos, mas que doem como se ontem fosse.Era a primeira vez que eu não o levava em nosso carro, a primeira vez que saía de casa por tão bizarro meio de transporte.Foi também a última,por este ou qualquer outro,porque ele não voltou."É como se fosse meu enterro", ele disse, eu lhe apertei as mãos e fiz uma recriminação qualquer, provavelmente eu o chamei de bobo,como sempre chamamos alguém quando não temos argumentos para contestar.  Com voz arfante ele continuou, "olha os carros, estão nos acompanhando, estou vendo o meu próprio enterro em vida, imaginando como vai ser."Não me lembro de ter falado qualquer outra coisa, nem ele. Só sei que poucos dias depois seu corpo sem vida deixou o hospital. Eu estava em casa quando recebi a notícia, havia acabado de chegar do Colégio.Meu irmão telefonou, eu atendi. Maria, disse ele, que é assim que me chama, fique calma, mas o pai morreu.Como se eu tivesse fora do corpo eu ainda me vejo deixando o fone cair, deixando o corpo cair e não precisei dizer nada para que soubessem, os outros, os que não haviam atendido o telefone. O pai se fora.Respirei fundo e me levantei e fui cuidar de nossa vida e da morte dele, porque cada uma tem sua hora, tanto a morte quanto a vida. Não adianta cuidar de uma na hora da outra. Recuperei hoje a cena que me mostra conversando com um primo e pedindo a ele que cuidasse do velório. Uma tarde e uma noite, seu corpo exposto na Associação Olímpica, tal qual o do meu irmão, o qual ele chorara comigo, na véspera de seu aniversário, dois anos antes. Alguns flashs sempre permaneceram comigo, alguns que eu gostaria de esquecer, alguns que quero sempre lembrar. As pessoas, vindas de longe e de perto. Os amigos.O carinho.O café quentinho, que alguém trouxe. Quando a noite quase dobrava, eu, que me recusava a vê-lo ali, como um morto, quase cedi a pressão. Cheguei perto, os olhos medrosos fechados e então desmaiei.Um tantinho assim, o suficiente para que compreendessem que morto eu não queria vê-lo porque morto ele nunca estaria pra mim. Alguém me levou para casa ou foi comigo ou atrás de mim, que isso eu ainda não me lembro.Eu fui dormir e se é que pedra dorme, eu dormi como uma,sem sonhos ou pesadelos.Acordei no outro dia,o sol se aproximando do meio do céu, quase na hora,  não sei como fui, não sei com quem fui.Sei que fiquei de longe, olhando, e, no mesmo dia uma fúria seca se apossou de mim, impedindo que chorasse, fazendo com que eu começasse a agir. Arrumei seus guardados, assumi seus negócios e em cinqüenta dias o inventário estava pronto.Fui guerreira. Enfrentei o monstro da burocracia, enfrentei o descaso da lei e venci. Então, na véspera do Natal, entrei para o banho, abri o chuveiro e chorei. Foi como se as lágrimas lavassem minha alma e levassem minhas lembranças porque eu não estava preparado para viver com elas. Esqueci tudo, ou quase tudo.Mas agora, que meu coração se aquietou, elas vão voltando aos poucos. E eu vou construindo histórias, como uma colcha de retalhos multicolorida. Como uma obra de Penélope será uma colcha inacabada, porque desmancharei para refazer cada vez que sentir que costurei errado,que o retalho está torto ou mal acabado. Ou então, quando recuperar um novo retalho, acrescentarei mais um pedaço e a colcha ficará tão grande quanto a minha vida. 


Texto escrito para fazer parte de meu livro de memórias Um rio no fundo da casa, uma casa na frente do rio.