DO MAIOR ARREPENDIMENTO DA MINHA VIDA

Capítulo 19

O MAIOR ARREPENDIMENTO QUE TENHO NA MINHA VIDA

Seis anos? Ou sete? Não lembro perfeitamente. Primeiro ano primário ou segundo? Não vou saber dizer, mas lembro que comecei a frequentar a escola. Na verdade, o Educandário Nossa Senhora do Rosário, colégio das irmãs. Era uma construção de madeira, sem pintura, janelas amplas. Meus primeiros passos da caminhada escolar. Ai, que preguiça! Eu era tal qual um Macunaíma cianortense para o estudo. Longas tardes, calor sufocante, banco duro de madeira. Queria porque queria fugir. Sol, ar livre, matas, sítios, corregozinhos (os corguinhos), rios, pamonha, mexerica colhida no pé. Brincar, pular, correr, “livre filho das montanhas, eu ia bem satisfeito, de camisa aberta ao peito – pés descalços, braços nus – correndo pelas campinas, à roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras, das borboletas azuis!” É assim o poema???!! Rsrsrsr. Escola? Mentia para a professora, irmã Noeli, e para minha mãe. “Mãe, a professora pediu para eu não ir à aula e ficar estudando em casa um ponto (ponto, lembram? Kkk), pois estou atrasado e os alunos mais adiantados”. Ficava. Parece incrível, mas minha mãe não acreditava que seu filho de seis (ou sete anos) estivesse mentindo. Para a irmã Noeli, minha professora, de óculos de lentes grossas, eu mentia também: “Meu avô morreu!” (Perdão, família!) Uma certa vez, esqueci a mentira (drama de todo mentiroso), ela disse: “Outra vez????!!!” Levei um susto, perdi a fala e me recompus: “Não, professora, foi o outro agora” (Ufa!). (Perdão, família).

Um dia, matei a aula. Saí com a bolsa escolar (chamava bolsa), um guarda-chuva e o lanche: pão com manteiga. Sem este luxo de mortadela. Pão de casa. Tinha na escola um menino (lembro até hoje), de nome Luís. Ele levava pão de padaria com mortadela. Eu sentia o cheiro do acepipe, mas nunca, repito, nunca comi mortadela em toda a minha infância. À noite quando medito nos tempos idos, vem à minha memória olfativa, o cheiro, o odor, o olor daquela iguaria, hoje tão comum. Só mais tarde, adulto pude provar tal pitéu. Casa com cinco filhos (nascera a caçula, Cristianne) não é fácil.

Divaguei. Naquele dia, vamos ao que interessa, fui para a escola, mas já voltei já. Disse para minha mãe: “Tornei mais cedo para estudar tabuada, pois a professora foi me tomar e eu não sabia”. Mal ela sabia que eu tinha ido bem devagar, para dar tempo de na metade do caminho fazer o retorno, a caminhada de volta. Minha mãe acreditou, aquiesceu, deixou-me ir para o quarto para estudar. Eu imediatamente, abri o caderno, o livro e... encostei-os na cabeceira da cama. Peguei as tampinhas de garrafas de guaraná, de sodinha, e formei dois times de onze jogadores no chão (tampinha de guaraná X tampinha de soda limonada). Com uma bolinha de papel, ou com a própria tampinha servindo de bola, os pequenos objetos de metal ganharam vida, nome e emoção, no estádio do chão do quarto: Botafogo (Manga, Didi, Garrincha, Amarildo) X São Paulo (Poy, Belini, Roberto Dias, Benê, Gino). Resultado: 6 a 4 para o Botafogo. (Na época, os placares eram elásticos e o Botafogo, invencível, por causa do gênio Garrincha.) Bom, esta era minha visão infantil do assunto.

Eu não gostava de ir à escola... Vamos falar a verdade... O tempo nos distancia o suficiente dos fatos, tornando-os neutros, frios, distantes. Até crimes prescrevem com o tempo, quem dirá peraltices, artes de criança. Eu detestava ir à escola, pronto falei. Eu tinha mentido para a dona Alanir. Eu não tinha voltado da escola para estudar tabuada. Eu nem tinha ido à escola. Minha tia Nilza sempre me dizia: “O que eu mais me lembro de você, é com sua bolsa de escola embaixo do braço, o guarda-chuva, e indo e voltando para a escola.” Turismo. Eu fazia turismo no colégio, não bem estudava.

No outro dia (não há bem que sempre dure), emburrado, macambúzio, tristonho, para baixo, fui para a escola. Quer dizer, disse que ia à escola. Não fui. Fui para o bosque da cidade, porção vegetal localizada perto, ou mesmo ao lado da igreja matriz. Logo em frente, ficava a Rádio Porta Voz de Cianorte. Que saudade! Rádio. Porta Voz. Cianorte. (O Trovador de Toledo) –“Nas noites enluaradas, Na formosa Toledo, Alguém esconde um segredo, Um amor proibido”. Cantava fortemente Gilda Lopes, com sua voz soprano, melodiosa, triste, vencida pela dor. Cantava Nelson Gonçalves, seu baixo profundo: “Fica comigo esta noite e não se arrependerá. Lá fora o frio é um açoite, calor aqui tu terás”. Como esquecer o mambo de Tibagi e Miltinho? “Em outras noites, fui a luz de sua vida. E nesta noite, quem será seu novo amor? ... Embriagado, minha taça se esvazia, para marcar esta paixão que está comigo. De sua vida eu fui mandado embora... Sou um farrapo e estou jogado fora”. (E por aí, ia). Ai, ai, ai. Não sei por que todas as músicas eram tristes. Falavam de tristeza, de dor, de solidão. “Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino, de longe eu avistava a figura de um menino, que corria abrir a porteira, depois vinha me pedindo, toca o berrante seu moço, que é para eu ficar ouvindo”.

Voltando à narrativa, no meio da tarde, lá estava eu, no assim chamado bosque, debaixo de uma árvore. Sozinho. Balançava nos cipós, Tarzan. Lutava espada. Zorro, contra um adversário imaginário. Comia o lanche que era, como não podia deixar de ser, uma ração de soldado da Segunda Guerra. Lembro muito bem de uma batalha em especial que eu sempre participava: Die Bien Puhl. Este nome ficou para sempre na caixa econômica da minha memória. Não sei o porquê. Sonhava, mas não com a escola. Brincava. Vi um carro chegar à Rádio, que ficava em frente de onde eu estava. Dele, desceu o doutor Mário (promotor de justiça da cidade). Apressado, adentrou a emissora. Eu pensei: “Alguma coisa grave aconteceu. Ele deve estar indo anunciar algum acontecimento trágico na área criminal, na rádio (jornal diário e tevê da época)”.

É aí que a porca torceu o rabo, que a onça bebeu água, que o javali coinchou e que a patativa soluçou. A notícia tenebrosa era de um menino que desaparecera. Meu Deus, que notícia horrível. Quem era esta pobre criança? Onde estaria a esta altura do dia? Sequestro, rapto? Senhoras e senhores, a vítima não era ninguém mais, ninguém menos do que: eu. Minha mãe tinha ido ao colégio, logo após eu sair para cumprir o sagrado dever de adentrar ao templo do saber: “O Jeferson conseguiu aprender a tabuada, irmã?” Resposta: “O Jeferson? Faz dois dias que ele não vem à aula”.

Perdão, mãe. Eu te magoei, te feri naquela tarde distante. Quando cheguei em casa, depois de um sofrimento muito forte infligido à minha mãe (estou chorando), meu pai não me bateu. Levou-me até o quarto, ela estava deitada, olhos vermelhos de lágrimas. Meu pai só me disse o seguinte: “Olha, meu filho, olha o que você fez com tua mãe”. Foi a maior surra que levei em minha vida. Sem nenhum tapa, nenhum pescoção, nenhuma cintada. O olhar de minha mãe: o amor que eu golpeara.

Se arrependimento matasse, eu estaria morto.

Meu irmão Clodoaldo, veio, quietamente e me entregou um papel escrito, uma folha branca de papel. Clodoaldo foi-lhe, devo admitir, o filho deveras perfeito. Estudioso, sempre. Eu, meio que alérgico à escola. Atencioso, cuidadoso com minha mãe. Bem mais que eu. Ajudou-a, protegeu-a, abençoou-a, praticamente nunca deixando que nada lhe faltasse. Eu, devo reconhecer fui, durante muito tempo, mais para o filho pródigo. Apesar que, adulto, mudei muito. Que Deus abençoe meu irmão. Ele foi para minha mãe um apoio. Creio que ele poderia dizer sobre ela o que o valente guerreiro falou sobre seu pai no poema de Gonçalves Dias:

“Em mim se apoiava,

Em mim se firmava,

Em mim descansava,

Que filho lhe sou”

(I-Juca Pirama)

Se alguém estiver curioso sobre qual o escrito que o Clodo me entregou, vou publicá-lo, ou seja revelá-lo. O texto que meu irmão mais velho me entregou era este: (que puxão de orelhas!)

A Casa

Olavo Bilac

Vê como as aves têm, debaixo d’ asa,

O filho implume no calor do ninho!...

Deves, amar, criança, a tua casa!

Ama o calor do maternal carinho!

Dentro da casa em que nasceste és tudo...

Como tudo é feliz, no fim do dia,

Quando voltas das aulas e do estudo!

Volta, quando tu voltas, a alegria!

Aqui deves entrar como num templo,

Com a alma pura, e o coração sem susto:

Aqui recebes da virtude o exemplo,

Aqui aprendes a ser meigo e justo.

Ama esta casa! Pede a Deus que a guarde,

Pede a Deus que a proteja eternamente!

Porque talvez, em lágrimas, mais tarde,

Te vejas, triste, desta casa ausente...

E já homem, já velho e fatigado,

Te lembrarás da casa que perdeste,

E hás de chorar, lembrando o teu passado...,

Ama, criança, a casa em que nascestes!

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Tânia, pega um lenço para mim, por favor?