A família Addams
Era uma vez, numa pequena estrada vazia onde costumava caminhar descontraído e tardiamente com a ajuda da natureza, mas que naquele dia ficara estranhamente transfigurada e apagada pela bruma.
O "carocha" azul claro estava lá, como de costume, estacionado no começo da pista e passava quase despercebido para quem passasse por ali. Era de um azul desbotado e gasto pelo tempo. Fazia lembrar um automóvel que há muito tinha sido utilizado e que escolhera aquele lugar para descansar para sempre. Os pneus não tinham cor e o pó era visível em toda a extensão das rodas.
Já não era a primeira vez que notava aquela presença misteriosa que sugeria alguém muito velho e com poucos recursos materiais. Nunca tinha visto ninguém entrar nem sair daquele carro, o que aguçava bastante a minha curiosidade.
Tudo ficou mais claro, quando naquele dia apareceu ao longe a silhueta de um grupo de pessoas que se arrastavam pela trilha numa postura cadenciada, cujo movimento dos braços fazia lembrar o pêndulo de um velho relógio de sala. Eram quatro vultos longilíneos, ligeiramente arqueados e vacilantes. A sua postura não era de caminhantes atléticos, mas sim de penitentes conformados com o seu destino incerto.
Quando se aproximaram, pude constatar a presença de uma família que se deslocava compassada e silenciosamente em fila indiana, rigorosamente pelo lado direito, de modo a permitir espaço a quem quisesse ultrapassá-los ou cruzasse o seu caminho. Na frente, surgiu uma mulher muito magra, nova, de rosto feio e ossudo, pele baça de tom de azeitona e rosto sério, mas que curiosamente parecia preparada para um cumprimento casual em caso de necessidade. Logo atrás dela estava uma outra mulher um pouco menos magra e muito semelhante à primeira. Os traços eram os mesmos e somente o seu corpo era menos esquelético que o da sua irmã. O terceiro elemento daquela família era a matriarca, de meia idade, rosto mais aberto que fugia ligeiramente aos traços das filhas, apesar da expressão facial muito parecida. Por último, e a fechar a fila como guardião, a figura de um homem alto, muitíssimo magro e com o rosto exatamente igual ao das suas filhas, expressão responsável, olhar penetrante e um ligeiro sorriso de cordialidade. O mais impressionante neles era a capacidade de se deslocarem milimetricamente afastados uns dos outros, em espaços iguais e no mais absoluto silêncio.
Uns dias depois, enquanto caminhava já tardiamente por aquele mesmo lugar na companhia da minha mulher, percebi que o velho carro, vazio e enigmático, ainda lá estava. O meu impulso foi dizer-lhe que já o avistara antes e que achava que conhecia os ocupantes daquele "fusquinha". Adivinhando os meus pensamentos, ela perguntou-me se eu sabia a quem pertencia. Falei que sim, que tinha praticamente a certeza de quem era, embora nunca tivesse visto pessoas perto do carro e muito menos dentro dele. Ela olhou-me admirada e reconheci no seu rosto uma certa relutância por aquele lugar e por aquela situação estranha e desconcertante.
Quando estávamos já no final do nosso percurso, talvez a uns quinhentos metros do final da pista, apareceram eles, tradicionalmente enfileirados e cambaleantes à nossa frente. Como de costume, muito chegados à direita e preparados para se cruzarem conosco numa atitude silenciosa de reverência e simpatia, apesar do ar estranho e da feiura desmedida.
Notei, na minha mulher, uma certa curiosidade no olhar e uma vontade de me perguntar qualquer coisa. Já não dava tempo. Eles estavam muito próximos de nós e qualquer deslize da nossa parte poderia causar estragos e provocar algum constrangimento naquele encontro mágico e inusitado.
Não resistimos à tentação de nos virarmos para trás para conferir aquela família especial e misteriosa que acabara de passar e também para que pudéssemos ver se eles entrariam, efetivamente, naquele carro. Mas não foi isso que aconteceu. Seguimos aquele estranho cortejo com o olhar, até se tornarem uma pequena mancha quase indelével no final da trilha. A minha mulher, extasiada e maravilhada com aquele episódio, perguntou-me com um ar levemente sarcástico e divertido se eu nunca tinha visto, por acaso, uma pequena "mão" (autônoma, rápida, expressiva, com os dedos transformados em pernas) acompanhando-os alegremente como se pertencesse à família... Achei o comentário estranhíssimo e sem sentido. Parei por um momento, olhei para ela e fiquei a pensar. O que ela queria dizer com isso? Ah, mas só se... Claro, ela tinha razão. Nunca tinha pensado nisso! Esbocei um sorriso de cumplicidade e tornei a olhar aquele horizonte, em busca de uma confirmação. Podia ser essa a chave da solução...
Quando fomos embora, o velho automóvel tinha desaparecido como que por encanto, apesar de nunca os termos visto entrar no carro e/ou escutado o ruído do seu motor.