Cenas dominicais

Na esquina do Beco do Roncador com a rua da Linha um carro para, sem alerta nem alardes, abre as portas — e dois gatos, um preto e um cinza rajado, saem para o passeio dominical. O gato preto segue em direção a um poste, cheira-o e resolve usá-lo como banheiro; o cinza, aproxima-se de um saco de lixo exposto sobre paralelepípedos, degusta-o com os olhos, antecipa o almoço. O carro vai embora, deixando os gatos preto e cinza órfãos, à luz da frase "Presente de Deus", adesivada no vidro traseiro do carro. Um grande silêncio paira no ar.

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É fevereiro e tem Carnaval. E como bem sabe nossa vã folia, Carnaval, misturado com domingo, não dá ressaca. Pode dar briga, mas ressaca, não.

São 6h e meia da manhã de um domingo de fevereiro, o café ainda por fazer, a cama por arrumar, a casa uma bagunça, mas no rádio o frevo toca. O marido recomenda à esposa:

— Morzinho, hoje é domingo. Baixa essa p****!

Em resposta, a esposa retribui:

— Morzinho, deixa tocar. Hoje é domingo.

E eis explícito um conceito de ambiguidade.

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A cadeira é de balanço, mas não balança. Já balançou muito, gente de todos os pesos e letras, já fez hora extra por filantropia, comportou chuva e até fogo não fatal. Hoje está velha, gasta, enrijecida pelo hábito, incapaz de balançar, mas ainda dorme que é uma beleza, principalmente aos domingos. Um velho senhorio, aposentado, ao vê-la abandonada sobre um banco de rodoviária, decidiu adotá-la. Ele ainda não sabe que a cadeira de balanço que adotou não balança, mas não faz mal: ela também não sabe da insonia do senhorio.

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No céu colorido de um domingo cinza, uma ave varejista expõe seu espetáculo. Dá cambalhotas, faz caretas, voa rasante e, de repente, numa dessas idas e vindas, ao buscar as alturas, encontra no caminho um fio de alta tensão da Equatorial Alagoas. Pousa forçado sobre o teto de um veículo expresso, deixando no céu cinza dominical, pendurado no fio de alta tensão da Equatorial Alagoas, todo o coração. Finda o espetáculo, sem aplausos nem cachê — e domingo, além de cinza, torna-se fúnebre.

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Cá, na dobra da Rua Nova com a São Pedro, sob a sombra de um poste, sem gatos órfãos, sem frevo, desprovido de cadeira de balanço, de peito inteiro para o mundo, um bêbado dorme. Aproveita o domingo sem missas nem Faustão, sonhando com um domingo invisível e, de acordo com a meteorologia, sem previsão de chuva.

P.S.: O que é uma pena, pois o calor tá de matar. E não apenas o domingo...

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 09/02/2020
Reeditado em 09/02/2020
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