NA ANTROPOLOGIA DO PRIMEIRO SUTIÃ

Nessa época dizem que o comércio liquida.

Assim, em face aos novos tempos, esses nossos surreais, em que o dinheiro ganha mais valor pela escassez dos empregos, não é incomum a gente lançar mão das liquidações para uma ou outra necessidade mais premente.

E foi assim que surgiu minha crônica, fatos apresentados pela vida, dentro dum estabelecimento comercial que oferecia peças íntimas de primeira necessidade às mulheres.

Primeira necessidade ,claro, é o modo de dizer.

Se houver alguma feminista a me ler obviamente que ela terá toda a permissão do mundo e da História para repudiar a necessidade vital de uma mulher se paramentar com um sutiã.

Coisa horrorosa...onde já se viu um encarceramento dos sentidos e dos peitos livres em pleno século vinte e um?

Uma opressão, uma armadura, hoje até um misoginismo, quiçá...assim foi e , pela lógica, continuaria a ser crucificada a tal pecinha em meio as revoluções existenciais, sempre em socorro das liberdades.

Aliás, o primeiro sutiã pontua não apenas a História sócio-antropológica da Mulher bem como a história pessoal de cada uma de nós...pelo tempo que muda os valores, as culturas de modo muito acelerado.

Foi o sutiã, inclusive, o personagem principal duma propaganda no final da década de oitenta, quando uma marca de lingerie famosa eternizou seu marketing e a atriz protagonista dele, a encenar na propaganda o momento glamouroso duma "menina moça" quando do marco transformacional do seu encontro com o primeiro sutiã.

Ali se se soava um sutiã como um marco poético, como uma despedida pelas águas divisórias dum belo tempo sagrado que não volta mais.

"O primeiro sutiã a gente nunca esquece" era o "slogam", em verso de vida, do comercial que virou História.

Consta que a atriz tinha doze anos de idade e a marca alavancou seu nome de sucesso no rol das vendas da peça para adolescentes.

Doze anos também fez parte da minha e de tantas histórias, a poesia do " nunca se esquecer do primeiro sutiã".

Afinal a peça tem um simbolismo não apenas sócio-antropológico, mas biológico, posto que denota a transformação da menina em quase mulher.

Mas isso tudo é coisa do passado, estamos na era da modernidade.

Então, ali na loja, eu me perguntei: para um tempo tão descolado de hoje em dia, em que a liberdade de se "ser" extrapola qualquer atitude que soe "repressão", como estaria a posição da bela peça tão vilipendiada pelo tempo? Com certeza estaria nas vitrines dos museus.

Pela lógica atual, continuariam as meninas-mulheres rasgando suas peças íntimas em nome da liberdade ampla total e irrestrita, nesse tal do empoderamento dos gêneros multi-diversos?

Afinal, sinto que o momento social parece ser o de se rasgar todo o antigo que ouse relembrar o conservadorismo que emperra a vida em liberdade.

Ou será, numa situação bem contraditória, que o antigo e velho sutiã ainda faria parte do inconsciente da revolução íntima de se tornar mulher livre que usa sutiã?

Assim pensando...a resposta me veio a galope.

Ali olhando a variedade de modelos com verdadeiros requintes de arte e conforto, meus olhos bateram numas minúsculas peças, realmente de chamar a atenção.

Confesso que senti um leve incômodo que não sei explicar...pareciam meio fora do contexto das demais, algo desproporcionais aos olhos.

Então, ingenuamente perguntei à vendedora:"essas pecinhas são roupas para bonecas?"

A frase saiu espontaneamente, não tive como voltar atrás.

Ela, meio que pega por uma pergunta algo inusitada, me respondeu quase de olhos arregalados de susto:"não, esses "sutienzinhos" são para meninas de mais ou menos oito anos, somos especialistas nessa idade".

Ri de mim mesma, aliás, rimos juntas.

Ali, de súbito, surgiu minha crônica e minha proposta ao pensamento de quem me lê. Bem curiosa a sociedade...que justamente discute o atual tema.

E eu só queria conseguir me responder à minha própria indagação totalmente fora de moda:

"Onde estaria a infância vivida, deixada lá atrás, assim tão rapidamente, nas ruas dos tempos e tão exposta assim...até nas lojas das lingeries?"

Mas esse pensamento ficou só comigo, porque é perigoso pensar hoje em dia.

Tempos de mudanças axiológicas que não mais nos permitem apenas ser, inclusive nem se ser só criança, mágico e simples assim, por Direito biológico.

Hoje, aquele tão belo comercial do "o primeiro sutiã a gente nunca mais esquece" já tão teria mais a magia do seu sentido de transição temporal, porque não se pode transpor o que não se viveu.

O comercial, "tipo micou" como eu...pela vitrine dos tempos.

Hoje,em total era das liberdades,nem é mais permitido se dar tempo ao tempo para a mágica transição do "nunca mais se esquecer".

A social mensagem subliminar já é lei democrática imposta sem votação: preciso é rapidamente se esquecer de ser criança.

Saí da loja pensando:

"a grande liquidação mesmo é a dos sonhos".

Que pena.