TRISTES BRASIS
TRISTES BRASIS
Nos idos de fevereiro de dois mil e vinte a sociedade brasileira assiste o momento mais reaccionário de sua História. A chegada ao poder de estamentos que se autointitulavam "independentes e apolíticos" consolidou um sentimento ressentido de pessoas que sempre trafegaram pelas sombras da Inteligência, da Academia, das Artes, das Ciências e, sobretudo, da Política em nosso país. Eram personalidades caricatas, exóticas, verborrágicas, neurastênicas, apopléticas, folclóricas, violentas, odientas, odiosas e odiadoras... Da maioria -- sou forçado a admitir -- jamais lhes tinha ouvido falar dos nomes antes de assumirem os postos que agora ocupam. São homens e mulheres que relativizavam os avanços brasileiros Pós-Democratização e se especializaram em falar para plateias nostálgicas d'um passado idealizado de Ordem e Progresso, isto é, do tempo em que o Brasil era o país do futuro. O paradoxo da coisa é a promessa não cumprida pelos governos militares de arrumar o Brasil para que a prosperidade se estabelecesse em nossa sociedade. Ao desejar esse passado no presente, a maioria dos votantes no sufrágio de 2018 cometeu a temeridade de eleger democraticamente um antidemocrático histórico e suas turmas. N'esse estado de coisas, cada rincão do país vê surgir personagens ou grupos locais interessados em radicalizar as imbecilidades diárias que a Presidência da República nos oferece por método de escamoteamento de suas crises estruturais.
O que se observa é a vitória de sub-reptícios gerar uma república de rancorosos. A princípio, a metralhadora de meias verdades e belas mentiras d'estes senhores se voltou contra os vencidos. Sim, a oposição em geral e a esquerda em particular sofreram campanhas sistêmicas de desmoralização. Valia de tudo: Notícias falsas, lacração autoindulgente, revisionismo histórico, desumanização do oponente, perseguição de adversários e a propalada guerra de narrativas ou de informação. Todavia, em face das seguidas caneladas governamentais e dos pífios resultados da retomada econômica, o método de ocupar a opinião pública com questões secundárias -- por via de regra, relacionadas ao conservadorismo nos costumes -- outros inimigos do povo de bem passaram a ser elencados pela máquina de ódio da presidência. Assim, indígenas, LGBTs, ambientalistas, feministas, artistas, afro-descendentes, jornalistas e veículos de imprensa -- ainda que pautassem suas reivindicações fora do sistema politico-partidário -- passaram a ser continuamente atacados por um presidente que gosta de falar demais... Uma agressividade que beira o gratuito e flerta diariamente com o trágico.
Embora todo o sistema político brasileiro convivesse com práticas corruptas há décadas, houve um grande esforço para convencer a população de que o campo político-partidário à esquerda deveria ser justiçado pelos homens de bem reunidos em torno do triunvirato Bolsonaro-Moro-Guedes. Deveras, a política de extrema-direita aliada ao bom-mocismo legalista e ao neoliberalismo radical teve por missão ao longo d'esse longo primeiro ano de governo pôr os políticos remanescentes no devido lugar -- ou seja, submissos e intimidados por um Judiciário que sabe o que eles fizeram no passado. Seria com dossiês e processos que o Congresso se curvaria à liderança do Presidente para permitir que o Capital Financeiro reabilitasse a economia nacional e, d'estarte, reordenasse a sociedade sob uma meritocracia de resultados. A cereja do bolo d'esse cenário idílico seria a fé dos crentes de que Deus havia voltado a ser o Senhor da Nação Brasileira e que, portanto, a felicidade havia voltado à banda oriental da América do Sul.
Há, não obstante, uma tristeza omnipresente. Para decepção dos sensatos que embarcaram na canoa furada do antipetismo que elevou Bolsonaro ao papel de Salvador da Pátria, a Economia se recupera muito devagar em função dos resultados modestos da ampliação do consumo e da diminuição do desemprego. Para não falar do que precisa-mas-não-consegue, o Governo inventa crises semanais e nos distrai com o lugar-comum terra a terra de suas inusitadas políticas públicas de inspiração neopentecostal quando não neonazista. Os discursos parecem uma biruta de aeroporto, afirmando e negando à medida que as redes sociais reagem com mais ou menos simpatia ao que se expressa. É um presidente que não se vexa em dizer e desdizer quase tudo sobre o que tem a infelicidade de se declarar.
N'esse estado confuso de coisas onde rancor e inveja alimentam a falta de vergonha alheia pela própria ignorância, incultura e desinteligência, chegamos ao real motivo d'esse texto, a saber, a publicação d'um memorando da Secretaria de Educação do Estado de Rondônia que orienta o recolhimento de livros paradidáticos nas escolas públicas d'esse estado amazônico sob o pretexto de que eram inadequados à formação de crianças e adolescentes por conterem palavrões ou narração de actos indecorosos. A coisa, que já seria escandalosa em si pela desfaçatez de desestimular a leitura de livros já disponibilizados (logo, comprados e pagos pelo Poder Público), torna-se insustentável quando elenca as obras que entende de retirar das prateleiras escolares rondonienses: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Os Sertões, Macunaíma... Não! Não é mentira: Alguém que se diz técnico em educação decidiu praticar censura contra autores consagrados cujas obras constituem o florilégio imorredouro de nossa Literatura!...
Não se trata d'um caso isolado de incompreensão. Convém lembrar de que há menos de uma ano a Bienal do Livro do Rio ofereceu ao país o espetáculo da censura sob o argumento de se promover a proteção ao menor. A questão acabou denunciando preconceito cristão de relacionar homossexualidade com imoralidade. Proteger adolescentes da exposição a relacionamentos homossexuais demonstra que na perspectiva dos religiosos que governam a cidade do Rio de Janeiro a ilustração d'um beijo entre homens é necessariamente pornografia, não Literatura. Entre o recolhimento e cobrimento da capa da publicação, assistiu-se uma guerra judicial onde a liberdade de expressão mostrou-se mais uma vez ameaçada pelo fundamentalismo religioso e sua tentação de controlar corações e mentes.
Que mais dizer? Isso nos empobrece como povo de uma maneira inaudita. Cansado de odiar minorias em geral, um governo estadual alinhado com o bolsonarismo decide levar sua boçalidade ao ensino de Literatura. Difícil não ver senão rancor em tal disposição. Sim, os invejosos reaccionários se levantam contra as artes literárias com a prepotência de medir com sua régua moralizadora patética autores que não foram capazes de entender. Não lhes basta pretender criminalizar os livros de Marx ou distribuir Bíblias aos quatro cantos, faz-se necessário limitar o accesso à leitura de toda uma geração. Tratam romances, livros de contos e de poesia com o mesmo critério que imaginam adequado a obras audiovisuais -- isto é, a restrição etária -- quando na verdade objetivam tolher o senso crítico e, sobretudo, a capacidade de raciocínio e imaginação que o texto escrito preconiza. A ideologização olavista e o revisionismo histórico d'ele consequente parecem tramar uma espécie de revolução cultural que não apenas deseja controlar a presente produção literária e cultural do Brasil actual, mas também mudar o que se considera importante enquanto Literatura Brasileira.
No que depender das autoridades, há-de restar para nossa juventude apenas a Bíblia, livros piedosos decalcados da Bíblia e manuais de armas de fogo. De facto, para que ler Franz Kafka ou Edgar Alan Poe n'esses tristes brasis de nossos dias?
Betim - 07 02 2020