Quem compreende os sons compreende a vida
Lembro que uma das coisas que mais gostava na minha infância era ficar debaixo de uma árvore sozinha e em silêncio para ouvir diversos tipos de sons (vozes, ruídos, canto de pássaros, animais rastejando, o som das folhas das árvores, o som das verduras dos canteiros, dos animais no curral, de objetos, de pessoas e principalmente de me ouvir. Sim, isso mesmo, me ouvir. Ouvir meus batimentos cardíacos, minha pulsação, ouvir os movimentos do meu corpo, ouvir minha voz...
Inicialmente, pode parecer uma tarefa fácil, mas, garanto que não é. Em todo o mundo pouquíssimas pessoas conseguem se ouvir, são incapazes de reconhecer a própria voz e não conseguem ter nenhuma consciência dos movimentos do próprio corpo. Essas pessoas desconhecem completamente que seu corpo fala e que fala a verdade mais pura que pode existir dentro de um ser humano, ou seja, aquela verdade que não é possível falar através das palavras.
Desde criança necessitei ouvir infinidades de sons para aprender andar, falar, comer, conhecer pessoas, coisas, a natureza e principalmente, para me localizar nos espaços. No meu caso, aprender a ouvir sons, foi essencialmente, uma estratégia de sobrevivência, embora, não fosse realizada de modo consciente como faço hoje. Atualmente, tenho a maturidade para poder escolher tipos de sons que quero ouvir e entender, isso acontece quando acredito que tal som pode ampliar meu repertório sonoro e facilitar minha sobrevivência num mundo vidente. Existem outros sons ouço apenas, por um instante, isso se dá somente, quando julgo esse som dispensável no meu dia a dia, sem muita importância.
Meu corpo sempre foi um ponto de referência para meu conhecimento e mobilidade no mundo. Geralmente, a aproximação de uma pessoa falando é o suficiente para eu saber sua altura, peso, características físicas e de personalidade, batimentos cardíacos e pulsações. Irei perceber seus gestos com rapidez para poder me comunicar e me relacionar com esta pessoa num mesmo espaço.
Ah! Não pense, que pelo fato de eu perceber características físicas das pessoas com facilidade significa que as reconhecerei sempre. Digamos que fui dá uma palestra no seu local de trabalho ou de estudo e conheci você alguns minutos antes do início da palestra, conversamos sobre diversos assuntos e até trocamos contatos. Depois de uma ou duas semanas nos encontramos e iniciamos uma conversa, mas, você não se identifica, afinal, você acredita que eu lembro de você, porque, conversamos alguns dias atrás. Sendo assim, não existe motivo para uma nova apresentação, não é? Bom, seu pensamento tem sentido lógico, só que apenas para quem é vidente. Sua obrigação é independentemente do que aconteça quando você chegar próximo de uma pessoa cega diga quem você é. Isso é sobretudo, um recurso de acessibilidade comunicacional, social e atitudinal e ajuda a prevenir diversos contratempos.
No caso do exemplo que acabei de citar, provavelmente e por mais prazeroso que tenha sido nosso primeiro encontro não irei reconhecer você. A explicação para esta situação está relacionada com o ambiente/espaço em que nos conhecemos.
Quando vou ministrar palestra, oficinas, participar de eventos ou viajar, sempre estou atenta para tudo o que acontece ao meu redor. O tempo em que ficarei neste ambiente, irei perceber e conhece inúmeros objetos, características do espaço e uma infinidade de pessoas através da voz e dos movimentos do corpo, só que esta minha percepção é momentânea, acontece apenas quando estou nestes locais, faço isso, simplesmente para ter uma maior autonomia e mobilidade e raramente, irei adquiri conhecimento duradouro.
Portanto, caso eu conheça alguém nesse ambiente, raramente irei reconhecer depois, mas, isso não quer dizer que esquecerei por completo, porque, para mim, cada som é único, e diz respeito a algo específico no mundo.
Para mim, os sons mostram a identidade e a essência de tudo é a verdade pura de tudo o que existe no universo. Acredito, que quem percebe os sons, percebe a vida. Perceber os sons, não significa ouvir com a audição, significa sentir a vibração das coisas num determinado espaço para se situar e compreender o mundo.