No mundo vidente quem vê e quem anda na direção contrária?

Vivi durante toda minha infância na roça, diariamente eu e meus irmãos tínhamos uma série de trabalhos para fazer que se iniciavam mais ou menos umas cinco horas, primeiro íamos tirar leite da teta da vaca no curral, depois pegávamos frutas caídas no quintal ou colhíamos diretamente no pé, depois tínhamos que puxar água no poço para tomar banho e finalmente tomávamos café para irmos para a escola. Aliais, foi na escola que descobri que era uma pessoa com deficiência visual, mas, não fazia ideia do que isso significava, pois, nem meus familiares e nem os moradores do povoado que eu morava comentavam nada sobre minha deficiência, até uns sete anos de idade pensei que o mundo era da forma que eu olhava.

Ouvi apenas uma única vez uma vizinha me chamando de doentinha, foi num dia quando meu irmão e um amigo estava apostando uma corrida, cujas regras eram, pegar um porco no chiqueiro, subir no lombo dele e depois puxar o rabo para que ele saísse correndo em direção a cerca, o que chegasse primeiro ganharia a corrida. Quando percebi a brincadeira dos meninos, imediatamente, quis participar, enquanto os meninos me explicavam as regras do jogo ouvi a voz de uma vizinha dizendo “menina sai daí tu não pode brincar disso não, tu não sabe que tu é doentinha”.

Respondi zangada que eu não estava doente e que tinha até tomado remédio de verme naquela semana. Ouvi ela reclamar muito, mas, fingi que não ouvi e continue tentando tirar meu porco de corrida do chiqueiro, até que a vizinha foi onde eu estava, me puxou pelo braço com muita força e me levou para casa, onde contou para meu pai o que eu estava prestes a fazer, convicta de que eu ganharia uma surra de lascar. Meu pai ao ouvir as queixas da vizinha sobre mim, disse: “tô muito ocupado agora para ir assistir corrida de porco, mas, se você não ganhar a corrida dos meninos vai se ver comigo”. A vizinha saiu da porta da minha casa xingando e excomungando eu e meu pai. Fui para minha corrida sossegada.

Logo que subi no lombo do meu porco o danado correu disparado em zig e zag, passando por cima de ripas e galhos e batendo em tronco de árvores, uma verdadeira aventura! Cai e levantei umas dezenas de vezes rapidamente, nesse tempo, ainda não havia conhecido o medo e a insegurança. Nesse dia ganhei três corridas e o prêmio foi os meninos puxarem um balde d’água para meu banho nos finais de tarde durante três dias seguidos.

Aprendi a viver no escuro sem medo, fazendo e brincando de tudo o igual a toda criança da roça, subi em árvores, armei arapucas para pegar lambu, roubei ninhos de periquitos e manga da vizinha, tomei muito banho de igarapé, corri, gritei, chorei, briguei e aos domingos de manhã vestia minha saia branca de pregas, calçava meias de renda para ir à igreja tocar flauta e antes mesmo do culto começar eu já queria que ele terminasse para comer bolinhos de arroz com suco de murici.

Acredito que devido a infância que tive nos dias de hoje costumo esquecer que sou cega, as vezes, só percebo que estou andando sem bengala quando topo em alguém, num objeto ou o pior quando ouço buzinas e barulhos de carros e motos, até ontem, pensei que minha mobilidade estava ruim, porque, não estava percebendo buracos, desníveis no chão e nem aproximação de pessoas e animais, mas, hoje descobri que não é a minha mobilidade que está ruim, é o mundo que está barulhento demais, o chão tem desníveis demais, as ruas e os espaços têm pessoas, coisas, animais, demais.

Por isso, hoje, não aposto mais corridas de porco, não pulo mais cercas para roubar manga, não corro pelas ruas e não ando de bicicleta, primeiro porque, não tenho mais porcos, ruas seguras, cercas e mangueiras, só me restou uma bicicleta de cestinha enferrujada que está mais de dez anos guardada no bicicletário do condomínio que moro. Sem dúvidas o mundo atualmente se tornou mais vidente e, portanto, mais perigoso para pessoas como eu.

O mundo está lotado, entulhado e acelerado que parece que todas as pessoas que vivem nele andam na mesma direção, no mesmo compasso a ponto de não perceberem que a qualquer momento pode vir alguém na direção contrária percebendo as coisas diferente, ouvindo para poder sentir, ver e encontrar sua própria direção no mundo ou melhor para construir um mundo novo. Ah! Não pense que sou uma pessoa que vive no passado. Tenho apenas lembranças e conhecimentos acumulados que contribuíram e contribuem para minha sobrevivência num mundo vidente.

Algum dia você imaginou como uma criança com deficiência visual da roça brinca? Consegues imaginar uma criança com deficiência apostando corrida de porco, andando de jumento, subindo em mangueira, pescando, jogando bola, tirando leite de vaca, alimentando cabras e porcos, plantando legumes, colecionando álbuns de figurinha, pilando arroz, jogando videogame e assistindo televisão? Consegues?

Se você é uma daquelas pessoas que dizem que se ficassem cega morreria, que não consegue viver sem a sua visão, que se faltar energia elétrica na sua casa você não consegue comer e se duvidar nem consegue usar o papel higiênico no local certo, você vive num mundo extremamente limitado, moldado e estereotipado. Você é incapaz de pensar que existe inúmeras formas de ver e de viver, que para algumas pessoas existem diversos mundos infinitos, instáveis e não visíveis e provavelmente, você seja uma das pessoas que topam sem querer, naquelas pessoas que andam em direção contrária.

Ah! Tudo bem! Você topou em alguém mas pediu desculpas não foi? A tua pressa te deixou perceber que mudaste a noção de espaço daquela que anda na direção contrária? Percebestes que um dos olhos dela está na mão e que pode ter sido quebrado? E agora quem realmente está na direção contrária? Afinal, quem é a cega?

Por favor não pense que estou fazendo julgamentos contra os videntes, não tenho a capacidade de julgar algo distante e que não conheço. Mas, me diga o que você ver?