CONTRASTES

                                 04/02/2011
            Da série: Pequenas crônicas do cotidiano


A manhã escorre em azul sobre a cidade, ainda que - precoces - algumas quaresmeiras vestidas de roxo, chorem antecipadas o luto da semana santa.
Um ar abafado . Vez e outra, refresca-se à uma rajada de vento e a vida vai seguindo o seu rumo em meio ao burburinho das ruas.
Pardais pelos telhados, cheiro de fritura no ar, freadas, businas...Coisas do dia à dia.
Num enderêço elegante, ardósias desenham caracóis pela grama. Jardim bem cuidado, ipês, alamandas e ... melancólicas quaresmeiras (chorosas).
O portão eletrônico vomita um luxuoso carrão recheado com não menos luxuosa silhueta feminina espargindo “Givenchy” sobre o pranto das quaresmeiras.
Altiva e arrogante, ganha a alamêda ajardinada.
O asfalto agora lhe pertence, as cores da manhã são sua propriedade, as melhores lojas lhe aguardam, tapetes vermelhos rolarão ao seu encontro e bajulações lhes cercarão.
[ A dureza da vida que pisa as calçadas é tão somente um mero detalhe a enfeiar a paisagem ]
O automóvel distancia-se do seu enderêço deixando para trás
um dálmata, afrescalhado ,a sonhar com outros “cem”, esparramado na primeira pedra de ardósia ao lado do portão social.
Inadvertidamente, deixa pender para fora do gradil uma de suas bem cuidadas patas.
Um vira latas, passante, sente-se atraído por tamanha finèsse. Não satisfeito com o uso de seu precioso faro tasca uma generosa lambida na pata branca e preta.
O dálmata retrai-se aterrorizado – e num “ui!!!” clama por segurança.
O vira-latas, num jeitão meio debochado, desenha alguns rabiscos líquidos logo no primeiro poste e segue o seu caminho.
A cidade lhe pertence ! – De fato e por direito –
Sortidas, tombar-lhe-ão as lixeiras de tôdas as ruas. Ainda que não lambam-lhe a pata, será sempre livre para esparramar-se no canto que melhor lhe convier.
É um boêmio ! E, como tal, um sonhador respirando ares de plena liberdade.
Pára na primeira esquina, abana a cauda e late ( para ou contra ) algum vulto que apenas a sua percepção de cachorro é capaz de captar.
Se traduzidos, seus latidos certamente falariam de desigualdades, mas exaltariam a
 sua possibilidade de mijar em todos os postes e fazer a côrte à todas as cadelas que lhe cruzassem o caminho,
a graça de delinear a geografia da cidade apesar da vida aparentemente dura.

                        Joel  Gomes  Teixeira
Texto  reeditado.Preservados os  comentários  ao  texto  anterior:



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18/05/2011 21:54 - YARA FRANÇA
lembrou-me uma cena de 'a dama e o vagabundo'
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18/02/2011 15:53 - Maria Dilma Ponte de Brito
Menino....Como você é observador. Como você tira poesia das coisas simples com tanta leveza? Adoro suas histórias detalhistas, espelho do cotidiano. Parabéns! Texto lindo.
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15/02/2011 23:43 - Malgaxe
Reflexivo seu texto, o homem que sempre haverá de conquistar a liberdade e o poder pelo proprio esforço, e o animal que naturalmente tem este beneficio do criador, e dentro de suas cidadelas cada um vai impor sua vontade conforme a força que tiver. No homem sobressairá como sempre o dinheiro e no animal a força bruta. abraços
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06/02/2011 20:03 - RobertoRego
Joel, belo texto mostrando os contrastes no cotidiano da cidade, riqueza e opulência de um lado, pobreza e privação de outro, dos quais fazem parte até os animais. Maravilhoso arremate com o vira-latas irreverente e debochado, pobre mas livre e sem dono, com o mundo aos seus pés! ... Efusivos parabéns, poeta, abraço forte, paz e alegria! ...
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05/02/2011 01:06 - Lilian Reinhardt
Poeta da minha terra, boa noite! A Arte e a Vida parecem ser a mesma coisa. Uma representação da outra e ambas o Enigma. Só os olhos do coração captam o sentido de pinceladas como estas traduzindo o sensível. Os paradoxos, as analogias, e as quaresmeiras já vestindo-se de púrpura intensa. A poesia nos recria e o poeta é sempre aquele mago a nos desvendar a intensidade que nos rodeia e habita. Obrigada pela beleza e partilha de seu texto. Cumprimentos! grande abraço
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04/02/2011 23:15 - Giustina
E não há o que pague a liberdade, maior bem do ser humano e... canino, felino, dos pássaros e seres vivos em geral! Gostosa e reflexiva crônica, meu amigo. Grande abraço.
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04/02/2011 23:14 - Maria Olimpia Alves de Melo
Uma visão da vida cotidiana, envolvendo madames e cães, sempre agradável de ler...
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04/02/2011 23:13 - tania orsi vargas
Feliz por te encontrar na capa e poder ler esta crônica tão perfeita e elegante quanto a personagem feminina usando Givanchy... Uma forma lírica e tão leve nestas tuas letras para mostrar o valor da liberdade e da autenticidade. E por acaso, desencavei um antigo poema que fala tb. na busca pela nossa verdadeira identidade. Aproveito para agradecer tua mensagem que muito bem me fez quando estou assim um tanto desmotivada para visitar e trocar recados. Não desista nunca de me escrever, ta bom? Uma boa noite e grande abraço!