SOB AS MONTANHAS DE AREIA



31/01/2010

Elas estão ali.A quadra imensa convergente com a esquina onde moro está tomada de areia...Montanhas de areia que se vão movendo diariamente ao ruído ensurdecedor de pás carregadeiras alimentando carretas aos seus destinos.
Os montes de pedra e areia sufocaram histórias nesta quadra.
Eu nem pensava um dia vir morar aqui e já nutria um carinho imenso pelo novo endereço.Sempre que cruzava por este trecho, permitia-me revisitar os velhos tempos de mim quando avistava-se ao longe a fileira de casas na Rua Rio de Janeiro,com seus quintais e jardins.A quadra que havia, então, sido despida de sua primeira história , abrigando o campinho de futebol da molecada ,os arbustos onde Seo "Bigode" amarrava os burros no pasto e o amplo espaço verde em que - invariavelmente - algum circo se intalava.
Foi num dêstes circos da vida que fui contemplado com vigorosa cusparada de uma lhama irritada – que não foi com a minha cara - cujo odor me persegue feito pesadelo à cada vez que me lembro.
Porém, muito antes de campinhos ou circos, a quadra acomodava uma bela história de um casal de comerciantes que guardo nítidamente na memória.
Fecho os olhos e tudo me vem à cabeça feito um filme em preto e branco:
A pá de madeira ia besuntando as bordas do pote de alumínio numa branca camada de banha de porco.
Esguio e ligeiramente calvo,aquêle senhor resguardava sob as grossas lentes dos óculos um atento par de olhos a moverem-se de um lado e outro,observando:ora o deslisar suave e compassado da pá sobre o pote,ora a mão que selecionava os pêsos para o fiel da balança na medida exata que a senhora pedira.
A cliente era dona Ortilizia.
Meiga, um pouco acanhada, vestia-se como uma baiana.Usava alguns colares no pescoço, tinha os cabelos presos numa peruca discreta e vestia-se com blusas rendadas e saias muito longas e franzidas.
Seu andar era lerdo, macio...
Algo como quem desejava sorver intensamente a placidez que reinava naquela quase aldeia dos anos 50.
Morava numa casinhola singela à beira de um riacho de aguas claras proximo à um pontilhão que nos conduzia – a piazada de então – à mata recheada dos mais variados frutos silvestres.
Ao lado do senhor atendente da bodega , protegida por uma espécie de guichê, a sempre bem trajada espôsa anotava numa resma de papel o movimento da casa.Sobre a sua mesa os olhares carrancudos dos índios fustigavam!
Enfileirados e presos às rotulagens dos conhecidos tinteiros "Guarani",por onde, mergulhadas , descansavam as penas de escrever.
Espalhados ainda, podiam-se avistar uma pedra achatada, em formato de batata - polida pelo manuseio - e a delicada mãozinha de metal com mola de arame pressionando a papelada que se ia avolumando.
Verdejava entre as duas portas largas, pendente num vaso de barro, um viçoso guiné atado em sua haste por um laço de tecido vermelho.
Nas laterais, tábuas maciças erguiam-se em rústicas banquetas e na parte superior da parede, dispostos entre algumas gravuras, a fileira de cabides esperava pacientemente pelos chapéus e demais acessórios da freguesia.
O tempo vagava sonolento naquela quadra, naquela esquina...E tal como o tempo,os fregueses ia aportando aos poucos. Haviam cinamomos a sombrear-lhes as montarias e o aconchego do casal Santana a lhes informar os últimos acontecimentos da cidade.
O casarão cor de rosa esmaecido com janelas venezianas (das quais já falei em outra crônica) imperava entre os jardins de dálias e goivos.Caquiseiros delimitavam os espaços reservados à mais de uma dezena de casas de sua propriedade a render-lhes em aluguéis.A constante mudança de inquilinos conservava os ares festivos que imperavam naquela quadra.
Havia um estranho fascínio naquela venda.Algo lhe fazia diferente das demais.Reinava entre aquelas paredes um disfarçado refinamento,um sedutor aconchego que costumava atrair os frequentadores.Fruto da delicadeza e atenção que o casal dispensava às pessoas, dos modos e gestos sempre carregados de sutileza que os tornava diferentes dos hábitos simples e turrões a que estávamos acostumados.O senhor Santana,sempre sereno e justo em suas decisões.Dona Tuta,a esposa,e sua finésse,deixando pelo ar resquícios de perfumes finos borrifados em lenços e trajes que usava para as sessões do cinema local.
Uma página de história de um casal sedutor com quem convivi nos meus 8 anos e que jamais esqueci.
Guardo na lembrança minhas idas e vindas em busca das famosas “caixinhas de segredo” quando alimentava-se o sonho de algo diferente e o “segredo” revelava-se quase sempre na mesma coisa.
Hoje, na janela da casa onde moro, meus olhos já meio cansados, espiam insessante vai e vem de barulhentas pás carregadeiras e caminhões entre montanhas de areia e pedra.A fileira de casas da rua de baixo,desaparecera por trás dos montes.Chega a ser irritante o ruído do progresso de agora, porém, ainda que tomado de inquietante irritação, reservo-me um nostálgico silêncio e então vou retomando aos poucos debaixo daquelas montanhas, o casarão cor de rosa com janelas venezianas , bordado de dálias e goivos. Caquiseiros e cinamomos ao redor da cerca, a ferradura encravada entre as portas largas, Aurora, a filha , e os meninos brincando em frente à venda sob os olhares atenciosos do casal Sérgio e Tuta.
Esta , exalando pelo ar resquícios de um perfume inesquecível.

Texto  reeditado.
Preservados  os  comentários  ao  texto  anterior:


Comentários
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10/06/2010 19:44 - Lilian Reinhardt
Poeta da minha terra, que maravilha! Os olhos da alma quando enxergam guardam esses detalhes e repõe além do tempo, esses espaços guardados pela poesia. Fico a imaginar as dimensões que ocupam as coisas, além de sua materialidade visível, guardam-se ao sopro da arte, obrigada por nos proporcionar tamanha beleza e reflexão! abraço imenso!
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09/02/2010 13:44 - Norma Suely Facchinetti
Seus textos estimulam os sentidos e tem o poder de evocar minhas lembranças e despertar minha imaginação. Abraços.
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08/02/2010 17:06 - Ester Farias de Oliveira
Você tem o grande talento de dar cores, movimentos e aromas nesse texto tão bem detalhado em seus ambientes. Amei.
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08/02/2010 08:29 - Dante Marcucci
Sempre que leio os seus textos despertam-me lembranças parecidas...quanta coisa boa deixamos para trás... E os cinamomos, com suas bolinhas verdes... tenho um aqui em casa! Um abraço
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06/02/2010 21:29 - Layara
Que bom poder viajar contigo nestas tuas lembranças! Meu abraço.
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05/02/2010 18:16 -
Gosto de seus textos, volto ao passado, e como era bom, mas o progresso..... beijos Luconi
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04/02/2010 11:49 - Anita D Cambuim
Delicioso voltar para ler suas lembranças. Bom dia!
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03/02/2010 15:51 - CONCEIÇÃO GOMES
Voce tem o dom de nos fazer voltar ao passado.Tambem tenhos essas lembranças da mina pequena Vila de Irituia (hoje cidade) no interior do Pará.Quando vou de férias prá lá, procuro os guardados da memoria, mas o progresso levou tudo embora.
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03/02/2010 15:47 - Maria Iaci
Linda crônica! O progresso não pára e as cidades ou crescem ou morrem. Mas, graças a escritores como você, as boas lembranças ficam eternizadas. Um beijo na testa.
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03/02/2010 10:57 - RobertoRego
Sua bela crônica remeteu-me a cenários da minha saudosa terra natal, no interior mineiro, onde também retratos bucólicos marcaram minha infância! ... Bem elaborada, estilo elegante, a narrativa merece um lugar de destaque em sua obra, caro poeta! Bom dia e aquele abraço.
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02/02/2010 05:13 - josé cláudio Cacá
Os momentos que fizeram história em nossas vidas não dão passagem ao progresso sem esbarrar numa saudade. E você os descreve com tal riqueza que atiça as lembranças da gente o tempo todo. Muito linda! abraço. Paz e bem.
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01/02/2010 23:18 - Giustina
Tuas lembranças descritas aqui, sempre me levam a lugares e situações da minha infância. É repousante te ler, Joel. Grande abraço.
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01/02/2010 22:31 - Maria Olimpia Alves de Melo
Saudades eu tenho das coisas simples que só as cidades bem pequenas desfrutam...