Das amizades que vem do álcool
“Você é aquilo que você como”. Sempre pensei neste ditado popular a partir de uma leitura biológica. Para mim significava uma orientação para nos alimentarmos bem, seguindo assim uma dieta mais rígida e controlada, para resultar em um corpo mais saudável. Porém, comer significa muito mais. O ditado assim também, imagino, quer dizer muito mais. Comer, para o ser humano, mais ainda na contemporaneidade, não se resume a suprir necessidades fisiológicas.
“Você é aquilo que você come” direciona para uma filosofia de vida que seguimos. Exemplo. A pessoa segue uma rígida alimentação seguindo orientações sobre calorias ingeridas versus calorias queimadas, quantitativos de carboidratos, fibras e proteínas. Pode significar que, além do cuidado com o corpo, ela tenta seguir padrões de estética, de saúde, que tem vaidade com o corpo, que quer se sentir bem, que quer longevidade, que quer se sentir mais disposto no dia a dia, etc. Já uma pessoa que não se baseia em dietas rígidas, que se alimenta de tudo, ou que dá inclusive preferência para pratos gordurosos, ingestão de bebidas e em quantidade não moderada, coloca a alimentação como algo que por si só fornece sensação de prazer, ou que simplesmente não liga para os bônus do controle de peso. Ou seja, o jeito e as escolhas da comida contam muito sobre as características da pessoa. Claro, são exemplos vagos, sem aprofundamento. Mas que podem servir de parâmetro.
Dentre os vários hábitos e significados relacionados à alimentação, o consumo de álcool e os padrões comportamentais e grupais inerentes a este movimento tem me feito refletir sobre. O consumo de bebida alcoólica está muito associado a uma vida social cercada de amizade e encontros. Algo muito comum é ser convidado para “tomar uma gelada”, “sair para tomar algo”. E nesta reflexão que pode ser muito ampla, vou me atentar aqui somente a isso: o álcool e a amizade.
Quais os aspectos positivos e não tão positivos nesta relação amizade e álcool? Comecemos pelo lado positivo. É evidente que, se muitos amigos se reúnem para tomar uma bebida num bar, numa casa, ou em qualquer outro lugar, e se o álcool é que ajuda ou mesmo determina que fiquemos horas e horas sentados numa cadeira proseando (quem nunca participou de uma festa que terminou justamente após acabar a bebida?) isso tem que ser enaltecido. Ou seja, em resumo, em tempos de aparelhos eletrônicos e tecnologias que aprisionam as pessoas nas suas salas e quartos de casa, a bebida é o elemento que aproxima fisicamente as pessoas. O álcool assim é um promovedor de encontros e amizades. Isso é algo muito positivo.
Mas vamos pensar por outro lado. Este outro lado é apenas para lembrar de qualificar o movimento. O movimento, por si só, das confraternizações regradas a álcool, já tem o valor de promover o encontro das pessoas. Mas será que o encontro entre as pessoas é o mais importante ou tomar uma bebida acaba sendo o que se sobressai? Lanço algumas perguntas para refletirmos sobre:
Quem já foi em uma festa ou encontro, e o encerramento se deu assim que a bebida acabou?
Quem já experimentou fazer convites para algum encontro em que não caberia bebidas e o número de presentes foi um fiasco?
Quem já viveu a experiência de ser chamado de amigo por algum colega de farra e quando precisou da ajuda percebeu que a amizade não foi correspondida para além das mesa de bar?
Quem já ouviu de alguém que parou de beber a queixa do afastamento ou desinteresse por parte dos até então amigos?
Quem se lembra de ter principiado no hábito de beber apenas para ser mais aceito no grupo que fazia parte?
Quem já se sentiu incomodado ao estar sentado numa mesa com pessoas a insistir para ingerir bebida alcóolica?
Zygmunt Bauman, grande sociólogo polonês, investigou como as nossas relações tornam-se cada vez mais superficiais, não sólidas, cunhando o conceito de amor líquido, que remete à não solidez e durabilidade das relações amorosas. Mais do que uma analogia, o conceito relação líquida concerne não apenas às relações amorosas, mas também aos vínculos familiares, de amizade e afins. É Evidente que chega a ser pesado dizer que são superficiais os vínculos afetivos firmados nos encontros condicionados ao hábito de ingerir bebida alcoólica. Mas o que as evidências do dia a dia tem nos mostrado, é que devemos reconhecer o tipo de vínculo firmado. Numa mesa de bar, muitos serão nossos amigos. Mas para que fique mais fidedigno, que acrescentemos o adjetivo. Muitos (não é a regra) podem ser os amigos de ocasião, e a ocasião no caso é um hábito, ou um ato. O ato de “beber uma”.