Diário de Bordo (Walden x Pasárgada: dois mundos distintos ligados por uma ponte de quase dois séculos.)

Diario de Bordo (Walden x Pasárgada: dois mundos distintos unidos por uma ponte de quase dois séculos.)

E chegou mais um dia de domingo. Como os muitos outros dias daqui, os pássaros saudaram mais este novo amanhecer como se nenhum outro jamais houvesse havido, como o vigor juvenil de uma desconhecida e inebriante primeira vez.

Recém imerso de uma noite de sono preenchida de muitos sonhos, como corriqueiramente são as minhas noites, eu me levantei do meu colchonete, (praticamente um tatame, dada a sua densidade) e sai da minha tenda para avaliar mais este dia. Fiz esta apropriação, como já me é comum, de pés na terra e a totalidade do meu corpo exposto aos benéficos raios solares das primeiras horas da manhã, um luxo impensável para a maioria dos meus semelhantes, muitos deles submetidos às draconianianas regras condominiais que vetam até a exibição de um simples torso despido.

Só para traçar um paralelo assimétrico, há poucos quilômetros daqui, na cidade de Ilhéus, o cenário não poderia ser mais diverso, mais contraditório; ruas lotadas de gente, lixo e barulho, esgotos correndo a céu aberto, e um odor fétido que me faz querer mais e mais me enturmar aqui na Cururupitanga.

Deixemos a cidade da musa Gabriela com seus muitos perrengues e voltemos a5roti a deste escriba que vos aporrinha continuadamente com esse nhem-nhem-nhem de de vida simples.

Levantei por volta das cinco horas da manhã, botei o dia de domingo na mochila, e fui pegar da enxada para acarinhar mais uma vez a cútis de Gaia, essa linda amante que me apascenta de tudo o que necessito. Este ritual diário de me levantar, trabalhar a terra e respirar o dia a plenos pulmões, me prepara para que o meu corpo funcione leve, devolvendo a5terra o que a ela pertence, harmoniosamente, e em seguida tomar um banho nas águas generosas do Cururupe.

Como não deve ser muito difícil de intuir, esta sequências de ações me torna plenamente apto para viver mais um dia.

No dia de ontem, um sábado tranquilo, recebi aqui em Pasárgada, um casal que veio para fazer uma caminhada pelas trilhas de cá. Ele, um camarada de uns quarenta e poucos anos, e ela, uma garota no início dos trinta.

O rapaz, um bom conhecedor de botânica, com formação humanística, me acrescentou muita informação, tanto sobre a flora, quanto sobre a topografia da área, enquanto eu ia orientando a menina para aprender a evitar o perigoso capim tíririca.

Fizemos uma boa caminhada, comemos um coco seco, compartilhamos idéias de vida, respiramos o ar bom de Pasárgada, e ainda fomos premiados com a presença de um bando de micos leões dourados fazendo a sua algazarra no alto das grandes árvores.

Toda vez que me disponho a entabular uma conversa com gente do mundo exterior, vem a tona a estranheza com o meu modo simples de levar a vida aqui, situação com a qual já me acostumei.

Afora o fato de portar alguns periféricos que me mantém em contato full time com o resto do mundo, eu me adaptei aqui a uma vida bem espartana, prática que só tem me acrescido ganhos, tanto no tocante ao físico, quanto ao mental e emocional.

Pois bem.

Sem querer fazer proselitismo das vantagens de um viver moldado pela simplicidade, pois isso é de escolha e preparo de cada um, fiquei muito feliz em descobrir um meu antecessor, que viveu no século dezenove, Henry David Thoureau, que se aprofundou nesse tipo de vivência por dois anos, e aproveitou essa experiência para escrever um livro no qual deixou registrado seus principais postulados, que vão de oposição a um consumismo desenfreado, matança de animais, opressão do estado, e outras mumunhas. Thoureau colocou o seu foco numa Educação renovadora, tendo a Natureza como pano de fundo para aplicar seus conceitos revolucionários.

A nossa proposta aqui em Pasárgada é bem similar, pois pensamos a Mãe Natureza como alavanca fundamental para reconduzir a nós, e aos nossos pacientes, a uma forma de vida com muito mais respeito á sustentabilidade, e divorciada de um consumo doentio e sem sentido.

A lição que fica para mim das vivências de Thoureau, é que, se pra ele, quase duzentos anos antes de mim, o viver simples já era encarado com muita desconfiança, hoje então dá pra se fazer uma ideia bem superficial de como essa visão de mundo é encarada.

Thoureau e este sertanejo aqui comungam de três pilares básicos para uma vida harmoniosa: bosques, rios e lagos, e a opção por uma alimentação frugal. Ele tinha o seu lago Walden; aqui eu tenho o sagrado Rio Cururupe.

Terras de Olivença, lua crescente de início de Fevereiro de 2020.

João Bosco

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 02/02/2020
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