A CIDADE, POR ANTONOMÁSIA

A CIDADE, POR ANTONOMÁSIA

-- "Vou à Cidade hoje… -- dizia-se antanho. Sim, para a gente que cresceu na periferia distante da metrópole brasileira, ir à Cidade -- assim mesmo: Sem carecer nomeá-la, de tão óbvia! -- era um acontecimento. No meu tempo de menino, eram duas horas dentro do trem suburbano. Tinha apenas dois por dia, isto é, um de manhã bem cedo saindo de Betim (que era a sede do município, mas não era "a Cidade"); o outro, que saía da Praça da Estação, no fim do dia para passar na nossa parada já de noitinha. N'outras palavras, se não tivesse dinheiro para o ônibus (o trem era bem barato!), o caboclo era obrigado a passar o dia na Capital, zanzando para lá e para cá, até dar hora de voltar de trem. Não foi uma nem duas vezes apenas que tive de fazer isso! Tempo difícil, de pouquíssimo dinheiro que, ao contrário da roça d'onde eu vinha, fazia toda a diferença. Para mim e para os meus, a Cidade, por antonomásia, era Belo Horizonte.

Hoje em dia é mais raro ouvir alguém se expressando assim, geralmente os mais velhos, aqueles que promoveram a épica-mas-picaresca vinda para a cidade grande, cujo fenômeno -- conhecido como Êxodo Rural -- mal dá conta do sofrimento d'essa massa movida à esperança que gastou sua vida dentro de fábricas, lojas e ônibus para dar uma vida melhor aos filhos. São eles, já encanecidos, que reconhecem com familiaridade a expressão e ainda a completam tal como se fazia d'antes: -- "Mas volta hoje?"… 

A dúvida era pertinente. Lembro-me, já na adolescência, de perder o último ônibus para os lados da minha casa e esperar até de madrugada para pegar uma condução que me deixou cerca de doze quilômetros de caminhada da minha casa! Recordo a solidão d'esta noite e o coração apertado de descer a rodovia vazia e escura até avistar as luzes da fábricas no entorno do meu bairro… Cheguei quase na hora de sair de volta! Sim, a Cidade chamava, todos os dias, para a gente construí-la e enchê-la de mais gente.

Era eu mais uma formiga no formigueiro do Centro -- hoje chamado de Hipercentro -- dentro dos limites da Avenida do Contorno, isto é, o tabuleiro do Eng. Aarão Reis. No meio, no cruzamento da Avenida Afonso Penna e Avenida Amazonas, o Monolito, ou melhor, o Pirulito da Praça Sete. De Belo Horizonte, não conhecia nada para fora d'ali. Não transitava por pontos turísticos, como o mirante do Mangabeiras ou a Lagoa da Pampulha, e era pobre demais para a boemia dos bares da Savassi. Tanto os bairros abastados quanto os afastados eram meras abstracções para meus olhos suburbanos. Minto: Conhecia palmo por palmo a Avenida Amazonas que nos levava e trazia quase em linha reta de Leste para Oeste até virar a rodovia Fernão Dias. O curioso do alinhamento d'essa artéria é ter tido, todos os dias, o sol nascente cegando os olhos de manhã e o poente de modo semelhante no fim do dia. Acho que por isso fiquei míope… Não tem como escapar: Olhar para frente é ver o sol baixo no horizonte raiando direto no nervo óptico! Podia-se olhar para o chão, mas decerto diriam que que'eu era vergonhoso ou coisa parecida. Minha vida sempre foi contra o sol.

A Cidade tinha tudo o que não tinha na periferia, ou seja, ensino técnico e superior; clínicas médicas especializadas; lojas de departamentos e, pasmem, cinemas! Pois é, n'aquele tempo em que se ia à Cidade, era, também, para ir ao cinema. Sinto-me velho em ter de explicar para a mocidade que não havia Shopping Center (não no centro de BH ao menos) e que cinemas era prédios autônomos: Cine Palladium, Brasil, Acaiaca, Pathé, Royal, Art-Palácio… Cada um teve ao menos uma seção memorável para mim. A última seção -- ainda lembro -- foi o Titanic, de James Cameron, no Palladium. Ainda vou, raramente, nas salas menores que sobraram, como a Humberto Mauro, mas nem de longe é a mesma coisa. Nem tinha como ser, não é?

Era um tempo em que se atravessava a pé o Centro, de lá para cá, o tempo todo. Cortava caminho pelo Parque Municipal e seguia Rua da Bahia acima até a Praça da Liberdade e depois tinha de descer de volta até o Mercado Central para pegar ônibus perto da Praça Raul Soares. Morro acima; morro abaixo… Se perdesse a noção d'onde estava, bastava olhar para o coroamento dos prédios e procurar o relógio digital do ITAÚ na cobertura do Edifício JK que, retirado ano passado, também não está mais lá. Não havia o Belvedere e o Buritis cheios de torres espigadas no pé da Serra do Curral. Aliás, para aqueles lados, o que se via eram os barracos do Aglomerado da Serra. Tudo mudou muito rápido n'aquela região, levando o comércio sofisticado da Savassi para os altos da Cidade. Com as novas centralidades, quase tudo que era importante saiu do Centro de BH. A Cidade -- ou ao menos aquilo que era Belo Horizonte para mim -- esvaziou-se. Essa nostalgia, ou coisa que o valha, que me fez escrever é, no fundo no fundo gratidão por ter crescido aqui, estudado aqui, trabalhado aqui. É um lugar que me diz muito, mas do passado passado. Só me resta torcer para que o Fado, essa entidade caprichosa, permita-me redescobrir o afecto d'estas ruas e avenidas à medida em que precise revisitá-las novamente.

Belo Horizonte - 28 10 2020