DE COMO EU PAREI DE CHAMAR MEU IRMÃO DE “DINHO”
Capítulo 17
DE COMO EU PAREI DE CHAMAR MEU IRMÃO DE “DINHO”
“Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado,
E em contemplá-lo, tímido, esmoreço.”
(Cláudio Manuel da Costa – Sonetos)
Um dia. Sempre vai existir um dia destes em nossas vidas, nossa vida mudou. Adeus, céu azul, pontilhado de nuvens brancas, que embalou tantos sonhos nossos. Adeus, queridos terraboenses, que foram minha primeira família civil neste mundo. Mudamos para Cianorte, a capital do Vale do Ivaí. Cidade progressista, em franca ascensão, cheirinho de oportunidades, de negócios de ocasião. Terra Boa, aos poucos, ia adquirindo um ritmo mais lento, mais para tranquilo. Corriam os anos 59, 60. Eu já perfizera o total dos 4 a 5 anos de idade.
Então, à época, minha mãe tinha quatro pequerruchos. Meu irmão mais velho: Clodoaldo, o “Dinho”, (mais franzino que eu, óculos armação de tartaruga, espírito arrojado). A Karen (apelido “Vi”) (que saudades) que a vida levaria tão precocemente, eu e a Maria (Lia). Meu irmão mais velho. Foi meu primeiro herói. Herói de carne e osso. Muito além de Fantasma (o espírito que anda), Zorro e sua máscara, Tarzan, Durango Kid, que inclusive só existe no gibi. Muito além. Quantas vezes, nós dois passamos triscando pelas portas denodadas do perigo, do risco absurdo, quase, quase...
Garruchas (municiadas com palitos de fósforo), brucutus (de fusca, lembram?) furtados, cabos de aço (de vez em quando, a gente brigava sim, contra os guris da rua), estilingues, sítios, laranjas, limões. Este foi nosso arsenal para uma vida aventuresca, coalhada de ação, colossal. Histórias saídas de algum livro infantil? Não, pelo contrário, bem reais. Algumas aventuras nunca serão contadas. Para o bem da humanidade.
Na minha infância, li muito livros do Mark Twain, escritor americano, especializado em aventuras mirabolantes, porém sempre de cunho infantil. Tom Sawyer, o aventureiro, desajeitado e audacioso, namorado de Becky Tatcher, a filha do juiz da cidade. Huckleberry Finn, o pária, nômade, sem eira nem beira, coisa que todo garoto sonha secretamente ser. Sabia pescar, curar verrugas, nadar, assobiar por entre os dentes e odiava a escola, o tempo passado trancado dentro de um ambiente fechado. Existe herói mais perfeito que este? Personagens imortais. Nadando no Mississipi, viajando de balsa, achando tesouros, vivendo as mais diversas peripécias, estas personagens enchiam nossos corações de gosto pela fantasia, pelo inesperado, pelo ousado, pelo fora de série.
Eu tive e tenho um irmão que certamente saiu das páginas de um livro de Mark Twain. Clodoaldo, para mim, “Dinho”. Bom, eu o chamava assim até que um dia, ele me chamou à parte dos seus amigos, no colégio Cianortense, onde estudava o primeiro ano ginasial: “Jeferson, não fica bem você me chamar de Dinho. Já tenho 11anos, meus colegas vão rir, dizer que eu sou filhinho da mamãe”. Entendi. Parei de chamá-lo desta maneira. Hoje, acho isto bem engraçado.
Meu irmão, adulto, já foi para a Patagônia de moto, já foi para o Alaska com o mesmo veículo. Tem livros escritos sobre suas viagens. É médico, perito da justiça trabalhista. Mas não é assim que eu me lembro dele. À minha memória vem, quando ele quis... descer o barranco do pontilhão da estrada de ferro em Cianorte, de bicicleta. (O pontilhão até hoje povoa meus sonhos. O imenso vazio, dois barrancos muito elevados que sustentam uma estreita ponte que liga os dois pontos tão distantes, e passa por cima da estrada de ferro). A descida era tão alta que isto certamente lhe seria fatal. Salvou-o meu tio Adolfo. Um grande amigo, um grande rival no futebol, o grande Adolfo (o Fô), da mesma idade que ele. Deus protege as crianças, principalmente as destrambelhadas um tanto.
Meu irmão. Como esquecer? Minha mãe nunca imaginou nossas peripécias. O dia que eu joguei um torrão de barro, na caixa de marimbondos à beira do rio Coruja. Gritamos: “Ninguém corre. Estátua. Joguem-se na água”. O Carlão se apavorou. O Carlão, irmão do Rui, no afã de fugir delas pulou uma cerca. Rachou a testa num pedaço de toco. Nós nos jogamos na água e escapamos da fúria voadora e zunidora. Voltamos para casa cabisbaixos, o Carlão vinha sangrando.
Alguns anos mais tarde, isto eu lembro bem, quando o Clodo foi estudar no Colégio Agrícola em Ponta Grossa, a saudade doeu, hein? Colégio Agrícola Nilson Batista Ribas, tão distante da nossa Cianorte. Um dia de manhã, entrei no quarto dos meus pais. Eles estavam quietos, graves, expressão fechada. Meu pai e minha mãe sonharam na mesma noite, o Clodoaldinho tinha morrido. No outro dia, meu pai foi para a cidade de Ponta Grossa, aflito, pensando no pior. Chegando lá, ele estava... bem tranquilo e faceiro em um baile. Graças a Deus, disse meu pai.
Vou até contar uma história que aconteceu quando já éramos adolescentes, a infância já se despedira de nós. Para fins de descrever melhor meu irmão, façamos uma interrupção na sequência cronológica da narrativa, privilegiando os fatos. Um pouco bem mais tarde, certa e determinada vez, fomos jogar em um patrimônio bem afastado. Fazenda Caturra. Ele jogava bem, foi lateral direito do Marumbi Futebol Clube aqui na capital Curitiba, profissional. Gênio explosivo, porém. Chegamos no abençoado lugar. Eu jogava de goleiro. Nosso técnico recomendou: “Clodoaldo, o povo aqui é meio bravo. Não aceite provocação. Eles querem brigar. Se levar uma entrada dura, um pontapé, disfarça. Vai jogar mais adiante um pouco, mais atrás. Mas não revide”. “Clodoaldo”, ele disse especificamente, pois tinha receio que meu irmão, criasse uma confusão.
Um minuto de partida. Ele divide uma bola com o Motorzinho, um rapazinho, entroncado, mais para bugre, cheirando alguma libação alcoólica desconhecida, mas profusa. O jogo para. O juiz chama a atenção do silvícola. O jogo recomeça. Motorzinho recebe na direita, corta um corta outro, ele é rápido, veloz e... dá de cara com meu irmão. Leva um rapa e cai igual um mamão maduro: Plááá´. Levanta o aborígene. Xinga meu irmão. E plááá. Leva um tapa de mão aberta na cara. Clooooddooo!!! Era para não aceitar provocação. Tarde demais. Formou-se o sururu.
Irmão, esta é uma palavra preciosa demais. Vou fazer um breve inventário de suas façanhas. Em Japurá, uma vez, um gol de falta nos redimiu de uma derrota estrondosa que terminou por não acontecer. Jogávamos contra um time estupendo. Eles tocavam a bola a ponto de ficarmos tontos. Nosso time amador, cheio de vigor, mas com pouca técnica. Eles eram meio que profissionais. Mas resistimos, éramos raçudos, cheios de energia juvenil e vontade. Quarenta minutos do segundo tempo, meu irmão que nunca foi daqueles jogadores trombadores, pelo contrário, era leve, habilidoso, chutou uma falta. No ângulo. Golaço. Só lembro o seguinte: eu ainda era pequeno, a maioria era de marmanjos mais parrudos, mais nutridos. De repente, eu estava dentro de um círculo de pessoas, sentindo o bafo quente de alguém na minha nuca, e gritando a alegria da vitória tão improvável.
Nossa maior aventura. O roubo, quer dizer o furto qualificado de cinco galinhas do nosso vizinho, senhor Emídio, pai do Alemão (depois, reclamou com meu pai e o seo Barbosa pagou seis para ele). Vem-me à memória, vividamente. Uma noite quieta, escura. Se houvesse uma patativa em Cianorte (não havia), ela não estaria soluçando. A lua não apareceu. Breu. Silêncio absoluto. Lembro o preparo..., a hora escura da noite. Cianorte dormindo. O latido distante, agourento dos cães, aos poucos silenciando. O ponteiro venceu o doze no mostrador. Doze, de meia noite. Cri, cri! Era o estridular de um grilo. Quase inaudível. Não havia praticamente, som de qualquer natureza, pois se levássemos um susto, seria o nosso prematuro fim, tenho certeza. Deus teve dó. Os tucanos não chalravam, por gentileza. As raposas não regolgavam. A natureza se acumpliciou destes pequenos corsários, bucaneiros de terra seca. (Mark Twain escreveria isto). Em alguma casa, a fritura tardia rechiava. Para nós, só o vazio sonoro. Nós nos movíamos na escuridão silente. Era um evento especial. Se houvesse graúna em Cianorte (não havia), não estaria trinando, se houvesse uma hiena, não estaria gargalhadeando. Acho que tudo era tão diferente, tão propositado, que até mesmo uma locomotiva não resfolegaria, uma onça não esturraria, um beijo naquela noite não estalejaria, um bife na frigideira não chiaria, um canário não dobraria, um cisne não arensaria, um coração não pulsaria, um burro não ornearia, as folhas das árvores não ramalhariam, o beija-flor não gavinaria, um javali (não havia javalis em nosso perímetro urbano) não cuincharia, as andorinhas não trinfariam, nem mesmo uma simples abelha zunzunaria. Naquela noite, não. E em feliz coincidência (ufa!), em Cianorte, no galinheiro adormecido, as galinhas não cacarejaram. Uma cerca de balaústras foi vencida. Uma porta de galinheiro foi aberta. Cinco galinhas subtraídas à socapa, à furtadela. Barulho algum. Nada.
O espanhol Antônio Padeiro cedeu o forno. A mãe do Porcaço pelou as galinhas (tecnicamente foram cúmplices). O coração disparado, saindo pela boca, o Joãozinho, o Zezinho (primo dele). A expectativa. A bronca da mãe do “Porcaço” nele e no irmão dele. Só eu, o Zezinho, o Joãozinho e meu irmão na padaria. A mãe do Antônio temperando e pondo as galinhas para assar. O cheiro incrível. O gosto bom, saboroso. Ah, se minha mãe ficasse sabendo. Éramos crianças, éramos irmãos. Está no sangue.