O dia em que João Calmon denunciou a Rede Globo

O DIA EM QUE JOÃO CALMON DENUNCIOU A REDE GLOBO
Miguel Carqueija

Trago alguns fatos da memória distante, e não será fácil localizar o “tape” como chamavam naquele tempo, se é que foi conservado.
A TV Globo, lembro-me bem, estreou em 1965 e durante algum tempo, adolescente inexperiente e ainda vidrado em tv, eu assistia muito, inclusive os novos seriados (alguns não tão novos assim mas novidade para o público brasileiro) e o longo programa de auditório dos sábados, o Tevefone.
Ela foi a quinta emissora do Rio de Janeiro, antes da tv a cores e da ligação internacional por satélites. As anteriores foram a TV Tupi canal 6, TV Rio canal 13, TV Continental canal 9 e TV Excelsior canal 2. Era o tempo e, que existiam revistas especializadas em rádio (Radiolândia e Revista do Rádio) e várias em televisão. Coisas que já não existem.
Começou a acontecer um fenômeno estranho: as emissoras anteriores começaram a fechar. A primeira foi a Excelsior, justamente a mais recente. Um raio atingiu a torre de transmissão no Sumaré e ela não foi consertada. Isso acarretou a cassação do canal. Durou dez anos: de 1960 a 1970. Depois creio foi a Continental que fechou, em 1972, tendo surgido em 1959. Em seguida a TV Rio (1955-1977). Quem ficou por último foi a Tupi, a mais antiga do Brasil e pertencente à Rede Associada fundada em 1950 por Assis Chateaubriand, o “Velho Capitão” como o chamava Davi Nasser. Curiosamente elas foram findando da mais recente para a mais antiga.
Em meados da década de 70 no entanto esta emissora começou a afundar. Era na época comandada pelo Senador João Calmon, herdeiro de Assis Chateaubriand no comando dos Diários Associados e emissoras coligadas. Um belo dia, quando a falência da Tupi era quase fato consumado (os salários atrasavam etc) João Calmon veio a público num especial de tv para mostrar ao país o que, segundo sua visão, estava acontecendo e a relação de tudo com a poderosa Rede Globo, a primeira em audiência.
Convém lembrar que, salvo algumas datas, estou colocando tudo de memória, do que me restou na lembrança. Pois não tenho como rever a exposição de Calmon, feita com certeza em 1980 (ano do fim da Tupi) ou pouca coisa antes. É muito tempo.
O ataque dramático de Calmon, nos estertores da velha Tupi, foi direto contra a Globo, a quem acusou de utilizar capital estrangeiro maciço e concorrer de forma desleal com as demais emissoras. Acusou-a de retirar profissionais de peso das concorrentes, oferecendo melhores salários. Calmon referiu-se a uma conversa que teria havido entre ele e o General Geisel, antes que este ocupasse a Presidência da República. E Geisel teria admitido que gostaria de fechar “aquela emissora estrangeira”, ou seja, norte-americana. Dramaticamente o senador, creio que até mostrando mapa na parede, falou no que representava a rede de emissoras associadas espalhadas no país e que até mesmo tinham algo a ver com a segurança nacional.
O que eu me lembro em mais detalhes foi o que Calmon falou sobre o apresentador Jota (João) Silvestre, que durante muitos anos foi das mais populares figuras da televisão com seus programas de perguntas. Ele era da Tupi, mas a Globo cobrira o salário da concorrente com ampla vantagem. Calmon tentou convencer o apresentador a não abandonar a casa. Silvestre então dissera mais ou menos isto: “O senhor (ou você, não sei como ele tratava Calmon) acha que eu posso recusar uma proposta dessas?”
A resposta de Calmon, que eu vou reproduzir mais ou menos (ou seja, de memória desvanecente) ficou para sempre na minha lembrança, ainda que não palavra por palavra:


“Silvestre, se tudo no mundo se resolvesse na base do dinheiro então não existiria mais uma datilógrafa, uma enfermeira, uma empregada doméstica, porque todas elas iriam se prostituir!”

Essas palavras contundentes de Calmon surtiram efeito. Silvestre continuou na Tupi, com o salário aumentado mas sem atingir o valor proposto pela Rede Globo.
O fato é que a Tupi acabou em 1980. Foi a última das quatro primeiras no Rio (hoje existem em redes, tendem a atingir o país inteiro e até fora, mas naquele tempo as emissoras eram bem locais). Se nos últimos anos não houvessem surgir a TV Educativa, canal do governo (ocupou o canal 2 da extinta Excelsior) e o SBT de Sílvio Santos (no começo era “TV Studios”), a Globo estaria só e sem concorrência no Rio de Janeiro. Vieram outras, como a Band e a Manchete (e esta apesar de certo aparato também faliu).
Calmon faleceu em 11 de janeiro de 1999, aos 82 anos.
Hoje a Globo tornou-se a maior rede de televisão pornográfica do país, apelidada de Globolixo, perdeu audiência e prestígio, dizem que atravessa enfim sua maior crise financeira. Mas continua agindo como se dona fosse deste sofrido país.

Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 2020.